sexta-feira, dezembro 28, 2007

Porque hoje é meu aniversário e eu completo 1.536 luas de existência...

Foto: Eu mesma por Marco Teobaldo

Sou o resultado desses amigos que tenho e do que recebo diariamente de afago, cuidado e demonstrações de afeto. É disso que sou feita: de um bocado de tanto amor.Sou resultado desses encontros, dessa magia que é meu cotidiano. Dessa minha negociação com a meteorologia pra fazer uma festa na praia e ter de presente uma lua imensa, incrível e pessoas lindas que apreciam a arte, que adoram compartilhar. Sou a protegida pelos meus Orixás. Sou minhas Meninas, meus Caboclos, meus Pajés. (SOU!) .Sou eu mesma essa gota, esse grão, uma obra eternamente inacabada: tudo é uma possibilidade de melhora, de mudança, de lapidação. Sou como as pessoas que me cercam, como essa gente que quer mudar a si mesmo pra que o mundo vibre numa freqüência mais saudável. Gente que presta atenção naquilo que não conhece porque abraça a novidade com a sabedoria de quem nunca vai querer parar de aprender: da teoria intelectual mais complexa à maneira mais criativa de improvisar um cinzeiro.Eu sou essa gente que se dói inteira porque não vive só na superfície das coisas. E que, por conviver mais profundamente com as angústias, são os primeiros a experimentar o êxtase de um dia de sol ou de chuva, de qualquer coisa aparentemente simples. Gente que sabe que viver com simplicidade é a coisa mais complexa que existe... e a mais sábia.
Eu posso ser qualquer coisa que me digam que eu seja porque assim me vêem, porque também sei que tudo é transitório, que tudo é movimento e possibilidade de alguma coisa. Estou apta para me deixar interpretar, mas não para rótulos. Qualquer pessoa que me pense algo, por pensar já perde qualquer coisa que me congele numa imagem... Mesmo quando dizem: tu és poeta. Poesia é fluidez.Sou o que estou e, isto sim, é perpétuo.

Talvez eu seja uma escolha quando todos os caminhos resolveram mudar de lugar só porque ela já foi feita...Mas eu celebro o mistério.
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Marla de Queiroz

segunda-feira, dezembro 17, 2007

Amistosidade



Foto: Maria Flores



Porque você enterneceu uma noite tão escura com tua voz mansa e teu jeito de entender dramas. E fez uma melodia pro meu poema mais desamparado: tudo era rascunho de alguma coisa fria até você agasalhá-lo...E me explicou porque não fomos tudo aquilo que poderíamos ter sido: naquele momento eu também não estava pronta. Mas me surpreendeu quando não propôs nenhuma mudança brusca e expôs com tanta honestidade a negligência que veio do teu medo: pela primeira vez não havia maquiagem em teu discurso.

O que acontece é que o tempo se apossou do que havia. (Foi quando pude te explicar que as minhas expectativas não eram exigências). Hoje em dia, depois de tanta história não acontecida, sobrou amizade, saudade, respeito. Já que fomos tão inábeis para o amor, restou enfim, essa ternura encabulada e nossas conversas pela madrugada numa hora em que a saudade nos constrói as frases com todos os adjetivos mais suaves para não espantar o sono. E a consciência de que não há mais tempo para usufruir o que não foi aproveitado a tempo. (Por isso choramos apenas por dentro sem deixar que nossa voz denuncie nosso olhar raso de esperas intactas). Por isso tanta doçura nas palavras pra não ferir ainda mais essa melodia frágil e cheia de melancolia. E essa tentativa de que o abraço, apenas escrito, tenha outras formas de tocar. Porque queríamos a mesma coisa, exatamente o que nos faltava e que não soubemos porque não tínhamos para dar.


Seguimos, ainda assim, unidos_ não por sentirmos o mesmo amor, mas por compartilharmos aquela mesma solidão.

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Marla de Queiroz

terça-feira, dezembro 11, 2007

Carta sem remetente



Foto: Paulo César


Gotas de som compõem uma canção de chuva. Veja meu amor, que as coisas não precisavam ser tão tristes. Mas meu coração aperta até quando danço. Porque você me garantiu que longe era um lugar que não existia e agora aqui tudo é espera e fome.Tudo é sede de alguma voz e de palavras de encontro.É que esse silêncio denso não me explica distâncias...ou talvez seja ele que nos afaste ao ponto de nem haver mais eco.
Sabe meu amor, ontem eu lembrei de você quando a previsão era de tempestades e as temperaturas ainda estavam tão altas.O ar pesado e o calor ofensivo.E havia um poema oco e insônia e falta de abraço.

(Minha poesia anda miserável e minhas cartas sem remetentes).

E quando pensei que pudesse começar a me divertir, todos foram embora da festa:eu fiquei sozinha olhando a desordem.
Sabe meu amor, sobrou apenas o meu copo vazio, taças quebradas e restos que não se aproveita mais. E depois, essas gotas de chuva que pretendem compor nenhuma canção.

Meu amor, se longe é um lugar que não existe como você me explica essa distância?

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Marla de Queiroz

terça-feira, dezembro 04, 2007

Extravios



Juliana Ferraz

Eu te agradeço por esse afastamento lento e gradual e pela viagem interrompida por seus perpétuos atrasos causados pelo medo de tirar os pés do chão. Agora, a cada dia eu preciso de uma roupa nova desde que minhas malas foram extraviadas para sempre com todo o nosso excesso de bagagem.
Eu te agradeço pela honestidade da sua omissão tão previsível que sempre confundi com meus presságios. Essa ida sem despedida que você covardeou: eu finjo que não sei, você finge que não foi.E a gente segue inventando que ainda se interessa pelo que começamos a construir juntos, num outro contexto, pra realçar nossos vínculos.

Eu te agradeço a descoberta de que se não seguimos juntos nessas coisas do amor,
seja porque talvez
eu, veterana
enquanto
você ama-dor.

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Marla de Queiroz

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quinta-feira, novembro 29, 2007

quinta-feira, novembro 22, 2007

(Re)fazendo escolhas


Foto: Rodrigo Bela Vista

Estou abandonando os excessos com dedicação, disciplina e com todo o cuidado que uma despedida pede para que não seja traumática demais. Eu só soube que estava tudo errado com as minhas atitudes quando elas não serviram mais pra sustentar minha leveza. Foi quando tudo que antes era divertido terminou por me machucar por dentro e plantar no meu olhar uma tristeza sem horizontes alcançáveis. Quando tive que começar a me explicar demais, quando meus personagens foram morar nos meus atores e começamos a viver realmente as dores que inventei, foi quando decidi matar a autora de tantos dramas pra cuidar da casa, regar as plantas e me isolar um pouco enquanto reavaliava quais seriam meus próximos passos. (A minha intensidade não pode continuar servindo de tripé para tanta agonia). Preciso pontuar as histórias, delimitar certos espaços, dissolver conflitos, definir minhas relações e preservar um resto de sanidade que há em mim.(Nunca fui misteriosa, mas expor minhas vísceras na luz mais nítida do dia têm me feito contorcer de desprazer).

A imagem que tenho é a de uma ponte interrompida que desistiu de promover encontros e transformou a metade do caminho de uma possibilidade de relacionamento, num precipício inda mais perigoso, composto por abismo e correnteza. (O estalo seco de um tombo anterior ainda ecoa). E a ressaca de tantos mal-entendidos me empurram pruma nova busca.Vou silenciar um pouco enquanto refaço o mapa do meu destino e elimino definitivamente essa geometria de triângulos que só serviram pra me espetar com suas pontas tão agudas.Talvez eu consiga seguir mais lúcida e tornar a falta de embriaguez suportável.Quero precisar cada vez menos de tantas próteses e do uso dessa desculpa da poesia que brota daquilo que mais dói em nós.Vou abrir a janela para que o ar circule e recicle toda essa energia estagnada. Não preciso mais de tanto contato com as coisas, tenho exagerado nos meus mergulhos e usado lupas que distorcem as imagens. Agora eu só quero me preocupar com uma nova disposição dos móveis na casa enquanto ponho as roupas sujas na máquina de lavar.

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(sus)penso em passos de (mu)dança.

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Marla de Queiroz

terça-feira, novembro 13, 2007

Saudade revisitada

Gustav Klimt (Abraço)

Revisito saudades ao rever você e dispenso a mesa de um bar pra sentar ao teu lado na calçada de um Drummond de bronze. Eu tinha na bolsa três poemas que quase escrevemos juntos e algumas poucas e parcas histórias pra disfarçar o nervosismo.Mas o meu disfarce não durou um abraço inteiro e eu chorei depois de rirmos tanto relembrando parágrafos especiais de um tempo em que tudo era uma possibilidade.

Enquanto eu disfarçava os meus olhos marejados, as mãos ansiosas arrancavam o esmalte das unhas. E a tentativa de resgatar todos aqueles assuntos que a vida roubou de nós. E a gente só quis que aquele momento não parasse de acontecer, mesmo depois que o mar dormisse, que a chuva caísse, mesmo que nenhuma estrela se acendesse enquanto as horas se fossem. Que pudéssemos estar ali, tão nós dois de novo, sem romantismo, mas cheios de afeto.

Os seus olhos e o meu cheiro, tanto passado e a intensidade voltando com eles. Os meus olhos e o seu cheiro, vontade de nunca mais deixar que nada morresse entre nós.Em cada palavra que eu dizia só havia a tentativa de justificar meu sumiço e dizer que não foi por maldade, que foi por cuidado e o desejo de preservar a única coisa que sobreviveu intacta após tanto desencontro.Em cada palavra que você dizia só havia a vontade do redirecionamento no fluxo dos sentimentos.

(Tivesse eu ali como fotografar tanto amor mudado, tanta coisa que vinha de uma vez pra preencher os meses desse abismo entre os nossos poemas).

Não sei ao certo o que isso tudo me causou. Eu só lembro que eu quis voltar pra casa mais cedo quando te vi sendo engolido pela multidão. Eu quis voltar pra chorar tranquilamente, com privacidade e alguma mordomia sem saber exatamente se havia alguma dor: se era saudade pura ou aquela revisita ao teu olhar tão cheio de ternura, distância e melancolia.

E depois era só aquela multidão sem você.E as minhas unhas sem esmalte, os meus olhos sem disfarce.E o nosso momento que parou de acontecer pra deixar o mar dormir em paz enquanto a chuva caía daquele breu sem estrelas.Você se foi com todas as nossas horas guardadas.Levando nos teus olhos um cheiro meu.E novamente o abismo que me separava de todos os nossos poemas. E eu chorei até dormir, abraçada no que ainda pulsava vivo de nós: um eco, um estilhaço de sol,um detrito de flor, a lembrança de um solo de violoncelo e o esqueleto de nenhuma esperança...
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Marla de Queiroz

quarta-feira, novembro 07, 2007

Quando a saudARDE


Foto: Carla Salgueiro


Hoje eu acordei indócil como são as fêmeas que clamam pelo sêmen semântico.Das que querem beber o líquido quente e viscoso que o verbo derrama no ventre da poesia.Indócil de energia represada, desse ardor inclemente, da vontade da palavra molhada pregada na língua do poeta.(E essa intimação para o passeio lúbrico entre as frestas).Indócil e fácil, súbita e assumidamente oferecida.Daquelas que se despem salivando penetrâncias. Crestada como flor ao sol enxugando-se do orvalho.Planta carnívora, cigana balançando a saia na dança dos Orixás.Suor íntimo de mar, um cheiro fresco de mato. Banho de rosas vermelhas, recendências de almíscar, sinfonia de gemidos.Indócil de tanta força entre as pernas, predadora consumindo a presa entre as coxas.(Cravo as minhas unhas na tua cor de canela).

Dispenso pontes, despeço pudores, despisto a distância
e atravesso a nado o rio que abraçou nosso saveiro.
Porque hoje eu acordei indócil dessa vontade de tê-lo...
“ Que seja doce”.

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Marla de Queiroz

quarta-feira, outubro 31, 2007

Do caos ao cais



Foto: Leonardo Pacheco

Minha poesia me traz consolo, inquietação, devastação e paz.
Ela nunca me diz com antecedência se será de resgate ou de rebentação.
Ela nunca me diz se vai amparar no auge das minhas urgências.
Mas quando minhas palavras se apaixonam por alguém,
elas dançam no corpo dos dedos e se revelam entre tantos segredos
pra sanar o meu caos interno e chegar no eterno cais.

É que, às vezes, navegar é o que há de mais preciso.

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Marla de Queiroz

sexta-feira, outubro 26, 2007

Uma possível versão da autora...ou um desabafo meu

Foto: Fernando Figueiredo


Mas o que é minha vida além desse amontoado de palavras? É como se elas fossem um embrulho incrível envolvendo uma imensa solidão. Enquanto todos aspiram amores e coisas materiais, eu aspiro a verbalização daquela sensação indefinida, a metaforização do ato sexual mais cru e a possibilidade de colocar poesia onde não há.


Eu sigo brigando com essa limitação da linguagem, de vocabulário. Eu sigo tentando racionalizar a minha loucura como quem luta desesperadamente contra um câncer.Às vezes, tudo que preciso é de repouso intuitivo, mas as vozes, as vidas, os personagens que criei não dormem: seguem trepando, tramando coisas, sofrem, amam, nunca, nunca calam. E quando se revoltam, me omitem detalhes importantes da trama, do desfecho, me impedem de desenvolver aquela cena, escondem o rosto naquela hora em que poderia ter sido a mais perfeita foto 3X4.


Eu sigo tentando construir signos novos que repertorizados abrirão possibilidades até então inexistentes. Como quando eu digo que o dia acorda ou que a dor cochila.Como quando eu sinto que o silêncio espreita o meu grito interno.Como quando eu berro que namoro o vento. Como quando eu falo que o amor morreu, quando ele não morre.Essas coisas todas que eu digo e que vocês conhecem.Essa vida inspirada nessas dores contadas e que eu vivo quando escrevo.Essas paixões tão idealizadas e inventadas que me custam a perda do apetite, o aumento da libido e o aperto no peito. Esse acordar sem paisagens possíveis porque as teci como quando se pinta uma aquarela que não seca nunca...E as cores continuam dançando na tela e apresentando novos caminhos.Essa vida presa do outro lado da janela.


Eu não caminho por estradas, mas por frases. Eu determino destinos enquanto o meu me escapa.Eu não entendo esses momentos de raiva ou de amor por pessoas que nem conheço e que criei com a força da minha fome de dizer, de dizer coisas sobre tudo que habita em mim como idéia vaga e fugidia...essa mania que tenho de tentar aprisionar sensações que não admitem tutelas.


Eu entendo que talvez eu tenha sido cruel com alguns destinos dos meus personagens, mas a vida toda é essa oscilação de boa sorte e tempos miseráveis em que tudo que a gente pode fazer é esperar e pagar pra ver...Ou rezar pra que passe logo, ou pedir pra que o tempo pare. Essa negociação eterna que todos fazem durante seus dias, pra que sejam úteis também os sábados, domingos e feriados, eu faço com a palavra. Eu sei que ela não silencia, mesmo quando digo que. Silenciar não é emudecer.Mas ela muda de casa, ela explora outras áreas, ela viaja pra outros templos.


E, humanizada como está na minha vida, e materializada como é nas minhas histórias, tem temperamento, e, de repente me abandona como quem descrê do relacionamento que acreditou um dia. Ela me cospe na cara uma incompetência de dizê-la. Ela me atira restrições e pré-requisitos de leituras para que se ofereça a mim novamente. Então ela diz: atualize-se, desgarre-se desse estilo, descubra o seu, experimente essa narrativa, escolha outro elemento, vista este personagem com mais elegância, dispa essa cena de sexo, pronuncie pau, buceta, caralho, ao invés de pênis, vagina, ânus.Se exceda!.E, às vezes, eu não sei ou não quero ou não posso.


Não adianta espalhar flores pela casa quando o inverno é semântico.Não adianta mudar o título do texto quando o problema é a falta de assunto.Não adianta usar de artifícios quando a verdade se ausenta.Não adianta pintar um outono e tombar folhas secas, quando a vagina só ficará molhada se você a chamar de buceta...

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Marla de Queiroz

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P.S.: As outras versões aqui.

quinta-feira, outubro 18, 2007

Arquitetura da Relação



Foto: Margarida
Por tanto amor a gente resolveu que vai morar um dentro do outro. Mas numa casa espaçosa com um quarto para cada individualidade. A gente quer que seja preservada essa pessoa que somos com nossos amigos e todas as lembranças mais especiais da nossa trajetória. A gente quer que nosso amor não preencha a nossa vida tão absolutamente a ponto de não restar uma lacuna que seja pra nossa vida anterior e pros potenciais que temos que desenvolver solitariamente. (Como quando a gente tinha tempo livre pra ser só e gostava disso.Como quando a gente não respirava apenas essa novidade da chegada do outro).

Nesse quarto pras nossas visitas, só não é permitida a entrada de fantasmas. De resto, todos os nossos convidados e aprendizados são muito bem recebidos. Depois a gente até pode escolher se compartilhará ou não. E por essa liberdade de escolha, a gente sempre tem vontade de compartilhar.

Por tanto amor a gente resolveu também que qualquer coisa que doesse um pouquinho ia ser conversada antes que doesse um montão.E que quando isso acontecesse, não ia ocorrer de cada um entrar no seu quarto espaçoso e deixar a porta trancada só pra assustar o outro. A gente vai reunir aquele punhadinho de problemas, sentar na sala do nosso peito e esparramar no chão como quem tenta montar um quebra-cabeça juntos sem olhar o desenho na capa da caixa. Porque a gente sempre vai querer descobrir a raiz da paisagem pra ela ser mais bonita. A gente quer conhecer profundamente a folha antes de compor a árvore. Porque a gente sabe que pular etapas é um jeito ineficiente de resolver o x da questão. (A vida não aceita o resultado do problema sem o desenvolvimento da fórmula).

Por tanto amor, desde que a gente foi morar um dentro do outro, nossa vida foi ampliada de alegrias sinceras. Eu ontem, por exemplo, estive muito só. Mas era porque eu não queria compartilhar coisas que não entendia. Eu existo além dele. Tinha um jeito de a vida entrar em mim tão diferente que precisei de todo o silêncio pra obter aquilo. Porque sou muito apegada às minhas inexperiências_ eu fico curiosa pra saber no que elas vão se transformar. Não quero macular o que é tão interior, pessoal e intransferível, assim como quem não quer mostrar a letra da música sem a melodia pronta. E ele estava na sala quando entrei no quarto pra tatear minhas confusões. E, em silêncio, ele respeitou meus barulhos mentais. E teve que suportar nossa rede na varanda tão vazia de nós dois, mas só por alguns instantes, ele sabia.

A nossa casa é ampla pra caber nossas individualidades, nossas lembranças, nossos amigos, nossos silêncios e tudo que estamos e o que podemos nos tornar juntos.

Por tanto amor a nossa essência é a parte mais preservada da casa.
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Marla de Queiroz
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P.S.: Meus amores, agora o nome do blog é transFLORmar-la...o endereço é o mesmo por enquanto...talvez eu também mude de casa.Veremos.

sexta-feira, outubro 12, 2007

A terceira versão_ ELA



Foto: Maria Salvador


Eu sou aquelas páginas que ela arrancou, os suspiros que ela abafou, o prazer que ela omitiu, a transgressão, a poesia escondida entre as cartas não entregues...Era pra eu ter sido a brincadeira de uma noite, a sobremesa de um casal, e, da garrafa de champagne, apenas a terceira taça.Depois tive que ser transformada num segredo,numa espécie de doença fatal.


Eu sou a pessoa pra quem ela ligava de madrugada, a quem ela visitava clandestinamente quando ele saía. Eu sou o motivo de todas as brigas que ela provocou. Eu sou a concessão dela aos apelos sexuais dele. E a tentativa de salvar uma relação falida. Mas me tornei um susto, um peso, o imprevisto pra quem tinha sua narrativa sob controle.


Eu sou aquele ponto e vírgula no lugar do ponto final de quem já tinha escrito o último capítulo do seu romance ideal.Ela nem imaginava que pudesse gostar tanto, ir além, sentir saudade quando estivesse sóbria.Eu sou as metáforas novas, a viagem inventada, os quinze dias na casa de serra sem dar notícias alegando que precisava escrever isolada do mundo.Eu sou o orgasmo mais intenso, a febre entre os lençóis,a dança dos travesseiros coloridos.Eu sou o café-da-manhã na cama, o banho de duas horas, o beijo de vinte e cinco minutos.Eu sou o poema que relata o encaixe dos nossos seios e o beijo de todos os nossos lábios. A história sobre meninas, sobre fadas e o violão encostado na lareira pra desocupar os braços pro abraço mais longo.


Eu sou as páginas que ela desistiu de publicar pra se proteger, se preservar.


Fui arrancada da história dela como essas páginas.Fui escondida entre juras de um falso amor que ela fazia a ele. Eu sou as tantas frases amassadas, descartadas da seleção dos capítulos.Mas sou a poesia escrita, tatuada no corpo. Sou a única digital que ela não conseguiu tirar no banho.

Eu sou essa emoção que ela rasgou da narrativa pra que os holofotes se voltassem todos pra sua história de amor mais convencional_eu seria a quebra da linearidade, a falta de estrutura do texto, o capítulo independente do resto do livro, aquele que sobreviveu sozinho.


Eu sou o silêncio deitado nos quartos,a cor do baton no retrovisor do carro.Eu sou o buquê de tulipas invadindo as tardes desavisadamente.Eu sou o final da espera, o amor de outras esferas.


Mas o que sei dele?Era um louco.Muito bem articulado, sedutor e completamente despudorado.Apertava meus braços com força,mordia minhas coxas com paixão e fúria, puxava meus cabelos, empurrava o meu rosto como quem desiste de dar o tapa.E , quando eu estava absolutamente entregue, quando eu estava quase suplicando a penetração, quando meus quadris se arcavam buscando o encaixe dele, me empurrava pro outro lado da cama e buscava a ela, que nos observava tocando-se com uma timidez que mais parecia culpa.E eu tinha que assistí-lo enquanto ele a possuía com ternura e calma.


Quando ela era aquela presa dissolvendo-se em suor, eu podia ver as veias do pescoço salientes com a força que ela fazia mordendo o travesseiro pra abafar o grito.Era quando ele me chamava pra perto novamente pra que eu intensificasse o prazer daquela mulher em brasa.E ela se contorcia como quem sofre, e era a cena mais bonita que eu já vi: um corpo como palco daquela dança incrível de labaredas azuis.(E eu sabia que ele só me possuiria quando ela já estivesse em transe).


Sim, ele era um louco. Mas só me possuiria quando ela não mais conseguisse pensar nada além de gemer e balbuciar palavras fraturadas.E ele me abandonaria antes que ela voltasse daquele sonho bonito.


Sim, ele era um louco inesquecível.

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Marla de Queiroz


P.S.: Este texto faz parte de uma peça teatral que estou escrevendo chamada Matrioska.

A primeira e a segunda versão podem ser lidas aqui.


P.S.2: Há tempos quero mudar o nome do blog...Por favor, deixem suas sugestões.
P.S.3: O Calcinhas ao Léo foi atualizado com os textos da sexta edição do jornal. Visitem-nos!

sexta-feira, outubro 05, 2007

Melodia proseada

Foto: Rosalina Afonso


Maria Violão era uma excêntrica convicta: só bebia cerveja com flor, vinho com cravo-da-índia e aguardente com açúcar-cristal...Mas o que mais a embriagava era a poesia. Um dia, arranjou um namorado: João do Cavaquinho.Casaram-se, ela parou de beber e tiveram três filhos: Ana Flauta, Antônio Percussão e Josimar Voz e Violão.

Maria Violão tá grávida de novo: disse que é menina e vai se chamar Música.A casa ficou tão pequena que tiveram que se mudar da partitura pra concha acústica.

Tem dia a briga é tamanha que tudo acaba em choro...
Mas, na maioria das vezes, a harmonia é tanta que tudo termina em samba.

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Marla de Queiroz

sexta-feira, setembro 28, 2007

Proposta



Vem, que eu canto pra você as nossas chuvas
porque entendo esse nosso pacto com o vento.
Se nossos corações palpitarem em outras curvas e a gente se for,
é porque ainda nos nutrimos das possibilidades de outros caminhos.

(Mas, vem, que minha proposta é de um perpétuo movimento:
deste que nos faz vivos, confusos, certeiros, intensos, inteiros.)

Eu entendo essa roupa feita de jornadas.
Eu entendo essa alma impulsionada pela eterna busca.
Mas quando teu corpo inteiro só precisar de um aconchego,
te faço uma cama entre os meus seios

só pra você me contar sobre o fim do tempo da espera.

(Vem! Pra nos anteciparmos todas estas primaveras.)


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Marla de Queiroz

sábado, setembro 22, 2007

Uma vaga sensação de...



Foto: Graça Loureiro
E, de repente, ela sentiu uma saudade. Mas uma saudade tão frágil e delicada que vinha destituída de qualquer expectativa de encontro. Era uma saudade seca, oca, sem necessidade de notícias. Como se ela relembrasse uma infância que foi boa, mas que não queria repetir. A saudade, ela mesma, a palavra toda preenchida pela sensação, com rostos, cenários, detalhes tão íntimos, mas sem voz, sem qualquer barulho. Intransitiva e estéril. Fotografia sem foco. Desapegada como um monge. Um copo vazio.

E, de repente, ela tentou organizar a sensação vaga e etérea como quem tenta segurar um raio de sol entre os dedos. Mas parecia ter desaprendido a dizer coisas. A poesia se atirava dela como que preferindo um outro abismo. E as palavras flácidas tentavam se equilibrar no único caminho pontilhado que se apresentava: ela estava repleta de reticências e não sabia como preencher tantas lacunas. Óvulo sem útero. Céu vazio de luas.Vestido órfão de um corpo.

E, de repente, (...)
*
*
Marla de Queiroz

segunda-feira, setembro 17, 2007

Carta




Meu amor,


Escrevo da praia enquanto o esboço de uma tempestade absoluta me espreita. Mas com a primavera anunciada, o vento vai perdendo a força e o inverno dá seus últimos suspiros.O mar está confuso: movimentos indecisos, cores indefinidas e algas, muitas algas. Na maior parte dos dias é a claridade que acaricia o corpo da cidade e as pessoas ganham um tom maior de sol na pele.Eu queria te dar esta paisagem de presente.Mas como reunir todos os elementos deste dia como se fossem flores que se organiza num arranjo? Se eu pudesse, te faria um buquê de flor-de-chuva, de sêmen de vento, de ventre de terra semeada por verbo, verso e dessa água cristalina rabiscando transparências no é-terno...
(Mas também sei que se você fechar os olhos dentro do teu quarto, ainda poderá ver o horizonte que pintei... Eu descobri que todas as paisagens brotam do interno).

Começou a carta com tanto pudor que tentou falar sobre o tempo, mas logo o assunto acabou.
Do que poderia contar além da saudade daquelas sensações homéricas, de quando o corpo falava mais que sua poesia e ela não podia fotografar aquele orgasmo nem os espasmos vindos depois, nos músculos que se contraíam até à câimbra?Mas tudo seria um silêncio azul se ela não pudesse dizer e, naquele momento, suas palavras eram vermelho-fogo,vermelho-sangue, vermelho-aceso, líquido-espesso-quente cuidadosamente derramado.Só que as palavras não se aproximavam da sua ardência e quando escrevesse, tudo seria passado.E a solidão da escrita era esse enroscar de dedos na caneta...
Porque havia um oceano que separava as suas mãos do rosto dele.


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Marla de Queiroz

quinta-feira, setembro 13, 2007

A segunda versão_ a do protagonista





Eu entendo a sua omissão ao publicar o nosso romance, só não entendo o que você chamou de "nossa história real”. Em momento algum você me perguntou se eu queria ser o protagonista disso tudo. E, de repente, me vi preso numa imagem, num rosto que você esculpiu, num temperamento, com desejos e personalidade que não eram meus.


Sempre gostei de você, da tua intensidade poética, mas quando me enfiou naquele capítulo com uma lua derramada de mel, senti enjôo e sono:eu não queria aquilo, aquele dia, naquele cenário com o par perfeito. Eu queria um porre num copo sujo e todos os cigarros que nunca fumei. Eu queria a companhia dos iconoclastas, as profundezas do obscuro_ (dessas necessidades que a alma tem vezenquando e que não existe delivery pra isso.)


Eu precisava ir, vivenciar e aprender. Não queria cheiro de xampu e maquiagem. Eu queria tragos de cachaça e alguma música triste na voz de um desafinado.Queria a quebra de página inconcebível, o verso mais embriagado, inovador e incoerente. Nem queria o clichê do futebol com os amigos, da prostituta de luxo me dando de graça. Queria tua revolta, a cuspida na cara, você fervendo de um medo sem camuflagens. Mas teu amor sempre foi higiênico demais, espiritualizado demais, saudável demais... Uma trepada tântrica com uma quase psicóloga-holística-bonita-e-ninfomaníaca-divertida-e-boêmia num boteco do Leblon....(não me excitava esse parágrafo.)


Eu era o karaokê na Lapa depois da sinuca. Um eremita. Você queria o super-homem-bom-de-cama-e-estiloso. Eu era a fratura exposta, o retrato da fragilidade, precisava do contato com aquela dor. E você, narradora onisciente, não me respeitou quando me enfiou numa praia bonita, me deu banho de mar pedindo pra eu alimentar o meu plexo solar, toalhas limpas cheirando a confort e um talento qualquer pra justificar sua dificuldade de se desvencilhar de mim... (mesmo sabendo que eu não era nada do que você havia idealizado).


Eu sei que você omitiu que publicaria um livro sobre o nosso romance, mas o que não percebeu é que a nossa história era real pra você, naquela hora, mas meu personagem não. A nossa história foi real pra nós dois, em todos os nossos momentos, mas não foi a mesma.E o que me restou foi guardar tuas ilusões na minha mochila pra partir, sem segredos. (Foi quando, finalmente, você resolveu perder a compostura tentando me arrancar das costas a história que omitiu dos seus leitores).

Já era tarde. Eu demorei muito tempo pra me libertar das tuas frases. Eu levava ali_ e só você sabia até então_tuas inseguranças e minhas recusas, minhas inseguranças e tuas compreensões e eternas justificativas pro que quer que eu diga ou faça. Sempre derramei minhas verdades sem dó nem piedade, nunca lancei mão de entrelinhas. Era a minha recusa à submissão de ser teu homem-alguma-coisa, belamente adjetivado com teu pronome possessivo predileto.Eu era o teu arquivo vivo.E um espetáculo na faixa de pedestres debaixo do sinal vermelho-verde, amarelo.E a frustração da metáfora irrealizada no meio de um soneto quase impecável, de tanto amor incerto. Eu não podia oferecer nada além de um fiapo de dia no meio da madrugada.(Insultuoso foi você querer de mim algo que sabia que eu não podia ou queria dar).


Agora é tarde pra que eu vire o personagem adorável do teu livro.Escrevi no meu o direito de resposta aos teus poemas distorcidos.Nossas histórias clandestinas revelei com adornos de verdade e pimenta. (Enjoei do teu chá de camomila).


O que te doeu, entenda, não foi o que eu te trouxe à tona indo embora, mas o que fiz por mim quando fui.Eu não te abandonei, eu apenas respeitei essa vontade que tive de ir.

Você queria um romance, eu fui um conto breve sem pontuações definidas.
(Ou alguém que sempre vai te amar da maneira errada).

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Marla de Queiroz
*

(continua...)


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Marla de Queiroz

domingo, setembro 09, 2007

Um retrato

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Meu menino alfabetizado pelo oceano,
me acena ao longe adornado pelas ondas.
Tenho em mim esta parcela de mar:
ele, todos os azuis e um branco-espuma-breve.

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Marla de Queiroz

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P.S.: Lembrem-se, dia 11 de setembro, escreva uma dedicatória para um desconhecido e deixe um livro pela cidade.
Por favor, quem puder, me ajude na divulgação.

quarta-feira, setembro 05, 2007

Uma balada para dois*


Desconheço o autor do desenho...(que pena!)

Tem tanta dor dentro desses copos,
tem tanto ardor dentro desses corpos
e tanto, tanto nesse “vezenquando”
que vezenquando tudo é encanto.

(Mas o ideal ainda tão distante
interrompe
o toque, o gole, o trago, a verve, o canto).

Por ser real
por estar tão próximo
e por ser possível,
há de parecer
tosco
pouco
óbvio
(mesmo, vezenquando, sendo incrível).

Talvez, um dia,
quem sabe,
um reencontro:
no bar da esquina,
na praia,
na fila do banco,
no trânsito.
Ela com o seu parceiro ideal,
ele com a sua mulher perfeita:
duas pessoas es-colhidas
para caberem nas suas antigas
e comportadas frases feitas.

*

Marla de Queiroz.


*Poema publicado no Blogo de Sete Cabeças há meses...
*
P.S.: Amores, dia 11 de setembro eu gostaria de relançar uma campanha que começou há uns anos, mas que depois foi perdendo o ibope.
É o seguinte: neste dia, saia de casa com um livro, qualquer um que tenha tido importância na tua vida.Escolha um usado, compre o mesmo no sebo, sei lá, mas escolha um livro interessante, não esses que a gente tem, nunca leu e quer se livrar.Enfim, escreva uma dedicatória pra um desconhecido e abandone em algum ponto da cidade: num ônibus, num banco de praça,num carrinho de supermercado...de preferência num lugar coberto, em caso de chuva.
Faço isso algumas vezes a cada 3 meses e a sensação é deliciosa.Se todos participarem, pode ser que você também encontre um livro por aí, com uma dedicatória misteriosamente sedutora.
Por favor, quem puder, me ajude na divulgação.

segunda-feira, setembro 03, 2007

Adolescências


Foto: Helder Ribeiro

Ah, eu só queria que Eduardo me olhasse como quando ele examina uma tesoura cega, mas vive entretido com aquele amolador de alicates.Eu escrevi um poema pra ele com tanta ternura: botou ao lado da tesoura afiada antes de ler, o vento levou com pena do coitado.Eu fiquei observando de longe, ele nem percebeu que minhas palavras iam embora.No dia seguinte, levei um pedaço grande de bolo...deu a primeira mordida sem me olhar e disse obrigado com a boca cheia.Pelo que me ensinaram, ele foi mal-educado.Aí, na aula de pintura, tentei derramar cuidadosamente uma imagem, o tema era livre.Quis pintar a voz de Eduardo. Tive que fechar os olhos.Me lambuzei toda de tinta, parecia ele fazendo uma carícia em mim.Pendurei na parede, tava meio confuso, mas tão colorido. (A voz de Eduardo é mais bonita que os olhos, esses vejo pouco, já que quase não me olha, mas a outra é limpa, parecendo um filete de sol atravessando uma música) .Aí fiz questão de perder as minhas chaves pra Eduardo mudar minha fechadura.Tivemos que trocar tudo, minha mãe já desconfiada.Só porque Eduardo é pobre, ela ralhou comigo. Nem ligo, ele é tão bonito e, para mim, é um artista.Mas Eduardo fez todo o serviço apressado, nem aceitou o suco........lembrei do quadro, queria dar de presente, e o elevador já tinha levado Eduardo embora, que nem o vento fez com meu poema.


Gostei tanto de Eduardo que não me olhava nunca, que um dia na escola, o Igor deixou um bilhete dentro do meu caderno.Nunca tinha reparado nele gostando de mim em silêncio, eu parecia uma tesoura cega.Depois eu percebi, que cego mesmo era o Eduardo.

*

*

Marla de Queiroz

quinta-feira, agosto 30, 2007

Dois dedos de prosa


Foto: Pedro Moreira



Tá vendo aquele moço ali, dona? É meu homem.Ninguém tem mais intimidade com o mato que ele.Ninguém tem mais intimidade com o mar que ele.Ninguém passeia em qualquer canto solitário dessa natureza de meu Deus com tanta tranquilidade.Nem parece que foi parido de um ventre, parece que brotou da terra. Depois dessas florestas e de todas essas águas que ele conhece, o lugar que ele mais prefere é meu corpo.Nossa querência é das enormes.Ele com essa cara de bravo, ninguém desconfia, que macho mais doce.Mas eu sei que nessa pele queimada de sol tem mar demais e uma fome escondida entre nossas quatro paredes, entre nossas pedras na cachoeira, entre nossas pausas pra comer o peixe que ele pescou e assou.Eu esperando todo o tempo, cuidando da casa, lavando as vasilhas, um pé apoiado no tornozelo, mania que tenho.Ele sempre chega por trás, tentando não fazer barulho, mas eu sinto antes e finjo que não percebi.Ele gosta de achar que tem o dom dessa surpresa.

Esse moço, dona, já me deu trabalho. Foi difícil domar, cavalo doido solto procurando rapariga pra montar sem sela.Eu tive que quase não perdoar a primeira safadeza dele, se engraçando todo com a branquela azeda da rua da frente. Eu me fiz de besta.Mas depois que ele já tava bem lambuzado do assanhamento, tranquei as coisas dele do lado de fora da casa pra nunca mais abrir a porta. Deixei chorar, levar banana da terra pra mim, joguei tudo pros cachorros. Joguei fora até as presilhas que eu queria tanto e ele me deu pra eu usar nas festas. Eu tava machucada, dona, tava atarantada demais com aquela traição.

Pois aquele moço teve que chorar na minha porta, tava embebedado, é fato, mas parecia menino maltrapilho, cinco dias pelos bares, nem na casa do amigo ele não voltava mais.Banho só de mar.E a mesma roupa encardida das andanças.Rondando minha casa, chamando meu nome, dizendo palavras de amor, todo arrependido. Deixei ele sofrer mais de duas luas inteiras, porque eu gostava dele,dona, mas meu coração, quando ouvia aquele choramingar arrependido na minha janela, sentia era uma sapituca de raiva que eu me contorcia toda pra não jogar a água fervida do banho todinha nele.Quase costurei o nome da azeda que ele se engraçou na boca de um sapo, mas depois tive um esclarecimento na minha razão: que mal não se faz nem se deseja pra ninguém_ volta em dobro, já me dizia meu avô, Deus o tenha.

Foi que um dia, no forró lá no galpão de palha de seu Benevides, eu tava toda enfeitada na minha sede de vingança de fazer o mesmo, na frente dele, da cidade inteira. Pra magoar bem pisado aquele coração sem jeito. E teve uma hora, tocou aquela música de quando a gente namorou pela primeira vez. Aí me alembrei dele cantando pra mim, cara de menino levado,falando que eu era a morena mais bonita da festa, eu toda acreditada. Mas a lábia dele já era famosa, dona. A mulherada toda se enfileirava pra ser a próxima das aventuras.E foi aí que eu ia aproveitar pra dançar com aquele João Alves, da loja de ferramentas, que já me queria desde muito tempo.E vi meu homem, pensei que ia puxar briga, mas não: ele me olhou com uma tristeza, uma tristeza tão escura. Nunca vi um olhar tão adoecido, tão lamentoso.Parecendo que o mar inteiro sangrava.Só dele imaginar que eu ia me abraçar com o João naquela música que era tão nossa, dava pra ver o peito dele se arrebentando por dentro naquela olhada firme que ele me deu. Tive pena, não, dona.Tive foi o meu amor voltando, eu querendo cuidar pra ele nunca mais me olhar assim.Daquela dor que eu vi nele, nem gosto de alembrar.

Pois esse homem é tão meu agora, dona, que até enjoa, às vezes.Faz de tudo e mais um pouco pra eu não brigar de jeito nenhum.Até me ajuda com as coisas de casa. Eu já tive só mais um namorado, que foi antes dele.Um violeiro que me encantou pela voz, quando a gente acendia as fogueiras e ele era o centro das atenções cantando as canções sertanejas que eu mais gostava.Mas me entregar mesmo, de não resistir a essas fomes da carne, foi só com meu homem.Que até hoje ele ciúma desse meu primeiro. Disse que vai aprender a tocar violão pro outro não ter qualidade nenhuma que ele não tenha.Eu fico é rindo dessas bestagens.Mas no fundo eu gosto dele achar que nunca vai me conquistar direito, por inteiro, senão a coisa vai ficando abandonada, sabe, dona?Olha ele vindo aí, todo faceiro...deixa eu me aprumar, dona...Tenho que me ajeitar. Hoje é noite de lua cheia em nossa casa...
*
*
*
Marla de Queiroz

sábado, agosto 25, 2007

A primeira versão_ a da autora

Foto: Mar de Sonhos

Eu omiti que ia publicar um livro com a nossa história real. Foi de pirraça e de amor não correspondido que eu escrevi aquilo tudo. Mas saiba, eu cuidava pro meu coração não acreditar naquela raiva, você sabe, eu não sinto assim, eu não sou assim. Eu só consegui, mesmo com meu coração tão apertado, falar do amor do jeito que a gente acreditou um dia nas primeiras frases. Depois tive que escolher cada uma daquelas palavras ácidas porque não podia levar teu personagem pra guilhotina_ o protagonista não pode morrer no meio da trama. Mas eu não sabia mais o que fazer com você, eu queria desistir do teu personagem porque me doía inteira ele sendo. Escrevi desgostosa tuas desventuras, entenda, eu era a narradora onisciente, eu era deus naquela ocasião e você havia me magoado tanto na página 143.Pode parecer loucura, mas não fui eu quem escolheu você me abandonar naquele café metido à besta, nunca tomei um café que custasse tão caro só pra chorar depois em meio àquela gente cheia de pose. Não podia ser num cenário mais mal-composto. Como autora, eu pensei que pudesse ser a mulher mais incrível do livro, a mais sedutora.Mas parece que teu personagem foi me dominando, querendo me magoar em público.E, quando eu achava que tinha todo o controle da situação, você me surpreendeu no final do capítulo cinco, querendo enfiar tua vida numa mochila e ganhar o mundo fora das minhas páginas. Você querendo todas as mulheres que poderiam ter sido minhas amigas. Desculpa eu ter sentido tanta raiva, mas as pessoas vivem essas coisas, até as mais espiritualizadas.Eu tive muita raiva de ser a narradora de uma história que eu não controlava mais. Você podia ter me poupado da sua autonomia, mas saiu, no meio do parágrafo, atravessando as ruas, saltando minhas vírgulas, tropeçando minhas aspas, desrespeitando meus parênteses. Eu tinha escrito uma cena na praia, no finalzinho da tarde, essas coisas que englobam uma lua inédita e cadernos espalhados em cima de uma canga colorida enquanto o casal toma um banho de mar num clima romântico.Mas a sua rebeldia me fez correr atrás de você e discutir a relação num capítulo inteiro, em cima daquela faixa de pedestre, tentando arrancar tua mochila enquanto os motoristas buzinavam furiosos por causa da baixaria debaixo do sinal vermelho-verde.Você bagunçou todo o meu roteiro.Foi por isso que dificultei a tua vida e te dei mais defeitos que charme.Eu queria ferir tua vaidade usando teu nome e sobrenome verdadeiros para que não houvesse dúvidas de que era sobre você que eu estava falando.E soterrei todas as suas qualidades naquele bloco de texto.Foi por isso que meu final feliz incluiu um casamento com um diplomata que não era você, no mesmo dia em que te fiz perder o avião pra Londres.

Eu omiti que ia publicar um livro com a nossa história real porque eu não queria que você descobrisse, antes da primeira edição esgotada, que a tua crueldade ia me render um best-seller.
*
*
*
(continua...)
Marla de Queiroz

segunda-feira, agosto 20, 2007

O Inusitado


Foto: Maria Flores
E lá estava ele naquela noite, na mesma festa, encostado na espera de alguém, de alguma coisa.Não havíamos combinado aquele encontro, portanto, eu seria o inusitado.E lá estava ele, sem saber o que fazer com as mãos desde que parou de fumar.Parecia nem notar que todos se divertiam, os olhos baixos sem observar.Não pude identificar se sua expressão era de indiferença ou tristeza, talvez nostalgia de qualquer época em que sentia mais disposição pras coisas mundanas.Era ele ali, deslocado, encostado na insistência de querer ser o que já não era.De qualquer forma, estava ali, no canto, disponível e mortal. E eu que não tinha mais qualquer apego àquela história, poderia surgir como uma breve alegria, dessas que passam a noite em claro com alguém só pra dar um fôlego novo pra retomada da realidade.
(Sei que observei tanto, que alguma coisa trouxe o olhar dele pra mim. Sorri, ele também).

E lá estávamos nós, na mesma casa: tantas palavras derramadas nos ouvidos, na língua. Os dedos dele escutando meus seios taquicardíacos.E ele sabendo o que fazer com as mãos desde que parou de fumar. Os olhos firmes, dentro dos meus. Era ele sendo o que estava, alguém disponível e mortal.Pude identificar a expressão de desejo. Meus quadris encaixados em suas coxas, escalando seu corpo lentamente, adiando o ápice, fazendo suspenses tolos. E lá estávamos nós: dedos e línguas, sonhos e poros, sussurros e supiros, suor e saudade, pulsação em todas as partes. Então, finalmente, o ápice. E o vinho que estava na taça e depois no umbigo,agora no sofá.Uma mancha que arrancaria um risinho cúmplice e safado quando fosse notada no dia seguinte depois que a alegria já tivesse ido embora...

E lá estava eu: “a alegria” virando a esquina num dia de tanto sol.
*
*
Marla de Queiroz


quarta-feira, agosto 15, 2007

Flores de Inverno, em verso.



O sol se pôs dentro dos nossos copos de cerveja.Espalhados sobre o mar, os últimos raios dourados: líquidos, dançantes...o resto da água cor de chumbo, mercúrio de termômetro como quando a gente era criança e estava febril.E eu o vejo tão bonito agora, com a saudade engatilhada no fundo dos olhos pra sentir quando eu deixar pra trás nenhuma promessa.
(Poderíamos falar por horas sobre tudo que nos atraiu, mas nosso silêncio sorria).
O céu azul,o vento frio, flores de inverno.Ele me agasalhou num abraço.
(Não fomos feitos um para o outro, é fato, mas talvez valha a pena nos refazermos).
Tudo que sabemos sobre nós foi descoberto pelos nossos corpos.
(Às vezes, o que parece ser uma superficialidade tem belezas honestas e profundas que escapariam em longas conversas inúteis e bem articuladas).
Eu sei que quando ele me toca, minhas retinas se enchem de saliva. Como quando uma boca quer.
E dizer é tão pouco perto de.

( E esse prazer que, de tão imenso, consegue doer em mim. Porque vai além de todas as expectativas do meu desejo que já era grande: o corpo não agüenta certas surpresas quando ele está tão cansado de não ter nenhuma ...Inda bem que a gente se adapta a tudo, em Búzios...;-)

*

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Marla de Queiroz

quinta-feira, agosto 09, 2007

Diâmetro

Foto: Luiz Carlos de Carvalho

Volta logo, meu amor!
Eu só escrevo por não saber o que fazer com as mãos
quando o nosso abraço termina.
*
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Marla de Queiroz

sexta-feira, agosto 03, 2007

Depois da tempestade


Foto: Rafaela

Talvez ele não saiba que aquela dor que ele causou, calou os olhos dela violentamente por uns tempos.Isso não é crime, é carma: magoar alguém assim, dentro do melhor vestido, remover com lágrimas o rímel cuidadosamente passado, deixar tão descrente alguém que achava a vida mágica...

Talvez ele nem desconfie que quando ele disse eu vou embora e ela tudo bem, logo que se deram as costas, ela respirou fundo uma, duas, três vezes, colocou quatro gotas de floral de Bach embaixo da língua e se afundou na tristeza escutando Killing Me Softly da Roberta Flack e Como Vai Você? do Roberto Carlos.E que passou sete dias lendo Nietzsche revoltada com o “último homem” e discordando do “Pequeno Príncipe” de Exupéry. Entendeu perfeitamente o I CHING quando disse que não era favorável atravessar a grande água e foi dormir sem sono, meditando cura e mantrando plenitude nas caminhadas matinais que só fazia se houvesse chuva. (Mas tentou suicídio comendo o último pedaço de pizza de calabresa esquecida, desde aquele dia, dentro do forno apagado...Porque morrer de amor seria um exagero).

Talvez ele nem imagine que ela parou de sair com os amigos pra beber vinho em casa escondido, no café-da-manhã. E escreveu vinte e nove cartas sobre a raiva e nunca enviou porque era moça espiritualista e tinha que manter o discurso saudável do “isto também passará”.(Não mandou, mas depois da segunda garrafa de vinho às três da tarde, foi por um triz).

Talvez ele nunca saiba que ela mudou os móveis de lugar, mandou queimar o colchão que já conhecia tanto o peso dos dois, e deu pro morador de rua o edredom que testemunhara tantos abraços noturnos.Dormiu no chão, quis mudar de religião, leu Lacan e criticou Freud pelo seu processo lento e generalizador.Pensou em mudar de curso, de profissão, de cidade.Quis mudar de si, já que seu corpo era a casa de um só sentimento.Fez uma viagem, não quis conhecer ninguém, posou de antipática porque estava apática.Se escondeu da lua cheia, fez do seu quarto um campo de concentração e depois se mudou para sala.Trancou todas as portas pra não entrar qualquer ilusão.Por tanto tempo era ela e sua tristeza intransitiva.

O que ele também não sabe porque nem ela sabia, é que um dia ela acordaria assim, vazia daquele amor.A dor exaustiva de cabeceira havia cessado, deixada no fundo do poço.Parou de se alimentar daquela porção individual de desilusão e enterrou o passado num túmulo desconhecido, para que não houvesse a menor possibilidade de revisitá-lo.


(Ele quase soube disto quando pensou que ainda estava recente para ensaiar uma recaída,um flashback. Mas para ela, que só soube na hora do reencontro tão almejado,já era tarde.)

Havia criado um mantra: No momento em que me dei inteira, ele me deu as costas.Isso não pode continuar supervalorizando uma saudade.Ser uma mulher curada de um amor, dependendo das circunstâncias, pode ser melhor que ser uma mulher amada...por ele.

E o seu melhor vestido pedia uma nova chance e um rímel à prova dágua.



*


Marla de Queiroz




terça-feira, julho 31, 2007

Celebração

Foto: Bruno Antão


E mesmo que o dia raie
(arraia desatada pelo rio vertical)
numa correnteza líquida de frio,
onde aja qualquer dor vai desaguar um choro:
levando mágoas, lavando estradas,
iluminando a nova estada,
trazendo um jeito de estar feliz
e na-morada.

*

*

Marla de Queiroz

sábado, julho 28, 2007

Somente

Foto: Catarina Cruz

Não percebia quando o desconforto era emocional: era o estômago que doía, a boca que secava, eram as mãos frias.Não era raiva, não era angústia, não era medo.Para ela era físico, nunca o emotivo. Dizia “adeus”, assim, como quem dispensa a sobremesa pra tomar um chope.Dizia “sim” ou “não” como quem escolhe a cor do esmalte.
Um dia, quando bateu o vazio, elaborou rapidamente uma saudade. Mas não sabia de quem, de onde, do quê. Não precisava. Era ela e a saudade de qualquer coisa que ela trocou por um chope, de qualquer noite que ela substituiu por uma tarde, de qualquer emoção que ela nem se lembrava mais. Mas que trazia uma certa languidez pro olhar e uma tensão pra expressão facial que ela pretendia.
Só pra valorizar a maquiagem mesmo.

*

*

Marla de Queiroz


segunda-feira, julho 23, 2007

Clave de Sol-riso



Foto: Rosalina Afonso


As mãos dele, sinfonia, música clássica urdida por ímpetos de tempestades.
Mãos anárquicas regendo suspiros: atrevimento de dedos.
(Ravel, o bolero_ partitura de ofegâncias).

As mãos dele, maestria, afinadas
arriscam-se pelas trilhas do meu corpo,as mais sonoras.
Delicadas, me calam os dramas fazendo do toque argumento fatal.
Eloqüentes, proliferam os enigmas da não-resistência.

Enquanto eu, hesitante, tento costurar melodias em nuvens
com a minha poesia,
ele, astuto, arrebenta o sol com as mãos,
solfejando melodias-brisas,
usando apenas o violão.

*

Marla de Queiroz



quinta-feira, julho 19, 2007

Uma paisagem


Foto: CAV


No mirante do Leme um silêncio espreita a menina com o grito guardado nos olhos.À espera de trovões, nuvens se aninham ao norte, escuras e solidárias. O oceano berra a impossibilidade do mergulho, mas surfistas confiam na maternidade das águas. (Há tempos o sol deslizou pelas costas do morro e mordeu a isca do mar, feito peixe ingênuo).A areia sem pegadas, dia anoitecido, ventania arrastando histórias e páginas de algum livro. E uma solidão tão exata.
O poeta dispensa a caneta pra contemplar. E, como quem se ilumina por uma alegria secreta e sem barulho, levanta da pedra e, súbito, segue à procura do Tempo que se desinteressou pelas horas.
(Agora, só um caderno abandonado completa a paisagem).

*

*

*

Marla de Queiroz
P.S.: Confiram essa BONITEZA!

quarta-feira, julho 18, 2007

Luto

Foto:José Gama




Faz um mês e meio que perdi a minha irmã Inês. Eu estava em processo de recuperação, não quis passar isto nos meus textos porque a morte sempre me falou de vida. Da vida que tenho, que preciso viver com integridade, com totalidade. E cuido pra não machucar minha poesia, sei da responsabilidade que tem quem escreve e publica.Mas hoje eu perdi um dos meus melhores amigos, o Dani Boy. E a dor que sinto é absurda.A respiração fica massacrada pela mão do luto. O sofrimento se materializa no corpo causando um desconforto físico. A alma fica estilhaçada, tentando reunir forças pra amparar o corpo.O descompasso das lágrimas, o grito pelo alívio. E nada cura, nada resolve, nada ampara. Nada me faz acreditar nessa perda.Ele tinha a minha idade e seu coração parou. Simplesmente parou de bater. Coisas de gente que vive com muita intensidade.Mas ao contrário de achar que a vida é injusta, isso me dá pressa de viver.Uma pressa tremenda de ser mais feliz, de desenvolver o meu potencial amoroso,de publicar meu livro, de perdoar e pedir perdão. Uma pressa tão grande de ser uma pessoa melhor.E de viver com tanta honestidade.

Nem sei se deveria compartilhar isso com vocês.Mas os que me acompanham a tanto tempo, sabem que a vida não é feita só de nascimentos.Sei que o Dani cumpriu sua missão lindamente e que já está sendo orientado e preparado pro seu grande processo de evolução espiritual pelos Guias de Luz. Peço a Deus que me dê sabedoria para desapegar-me da saudade que sinto e que sentirei sempre. Para que eu não seja egoísta querendo-o no meu cotidiano presente e ativo como sempre foi. Que eu saiba simplesmente agradecer ao fato de ter podido conviver intensamente com um passarinho tão livre e leve. Meu amigo mais fanfarrão, a companhia mais deliciosa e generosa.

Um dia escrevi um depoimento pra ele no orkut, logo no início da nossa amizade. Fica aqui minha despedida.
E que venha a vida com todas as suas polaridades e maiores belezas.


Dani Boy é a intensidade materializada. As histórias dele são fantásticas e ele é todo hiperbólico para enfatizá-las. Lindo, engraçado, e um boêmio em toda a acepção da palavra. O álcool selou nossa inimizade. É o único com quem me arrisco a beber na segunda-feira pra ficar com raiva dele no dia seguinte. E a gente tenta fazer as pazes a semana inteira bebendo cerveja no Léo. Dani Boy conhece tudo do Chico Buarque e não tem inibição nenhuma em cantar um samba todo desafinado...Ele é leonino. E joga capoeira sem se alongar depois de tomar todas. E dá tanto valor à amizade que faz cada um se sentir o mais especial do planeta. Dani Boy é o fanfarrão mais carinhoso e divertido que conheço. E faz a posição da rã como ninguém...hehehehe...Ele é um folgado, mas meu melhor companheiro. E, pensando bem, com um inimigo desses, quem precisa de amigos?


Eu preciso entender que o sol se põe, às vezes, no auge de um dia de praia. E que nada detém a noite. Perder alguém muito querido, é como perder o controle de todas as situações. A gente sempre acha que poderia ter tomado mais um chope junto, que poderia ter estado mais presente, que poderia ter feito algo mais incrível. Mas a gente se esquece é da fragilidade das coisas e de que alguém cheio de vida jamais vai inspirar a morte. A gente não tem como saber qual será a perda ou a vitória dos próximos dias.
É preciso seguir, confiante de que a escolha que fizemos é a melhor. E que a incerteza é o que nos impulsiona ainda, mesmo que cause tanto desconforto.

Me perdoem o desabafo, é que uma sucessão de perdas é muito pesado mesmo e sempre usei a palavra como uma das fontes de salvação e amparo. Não se impressionem com nada...isso faz parte da vida e quero acreditar que nem é a parte mais importante.
*
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Marla de Queiroz

quinta-feira, julho 12, 2007

Sobre meninas

Foto: sweetcharade


Meninas passeiam seus vestidos de mãos dadas. Despertam curiosidades nos olhares salivantes dos moços viris e das boquiabertas senhorinhas. Bailarinas da sedução, borboleteiam imaginações alheias porque desabitaram as convenções do amor público pra se libertarem da camisa-de-força com etiqueta.

Meninas são líquidas de águas temperadas. Ultrapassaram os epílogos do prazer pra mergulhar na emergência do ardor com afeto.E, delicadas na carícia sem ingenuidade, confundem-se no abraço das pernas enveredadas pela malícia da fome.E, na dança dessas deusas líricas,o roçar de seios e o beijo de todos os lábios.
Meninas passeiam por aí, lúdicas, exalando o feromônio doce do segredo.

(E vagueiam pelo lume sem fardos... porque são fadas.)
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Marla de Queiroz

sábado, julho 07, 2007

Um Par

Foto: Ana Meireles


Parecendo que o dia principiava uma ponta de nostalgia, mas já era um outro alguém chegando. A voz não tava clara, pressentimentos são confusos como violão que desconhece a melodia. Era como se precisasse elaborar antes de tudo, o sentimento que ela ia trazer, aquela voz.Então, ela determinou com a convicção de alguém que quer parar de beber, de sofrer, de fumar, de comer carne ou de qualquer coisa que incomode de algum jeito, que seria apenas saudável e recíproco.Tava cansada dos olhos afogados na ausência de um perfume ou de uma espécie de lirismo estúpido, como sempre.(Percebeu o final do sufoco na mudança do foco). O que o dia queria dela, trazendo as cores do olhar do passado? Não queria mais aquilo.Tava cansada.Ficou lembrando cenas que nem quis contar porque deu raiva. Que se assim o fim, melhor que assim o fosse.Mas sabia mesmo é que o verde que viria, reflorestaria aqueles olhos de imensas esperanças.Achou boa a sensação que a imagem trouxe e guardou num gesto: fez um movimento de mãos no ar e trouxe pro peito.Sorriu e calou. (E os olhos permeados do mistério bom).

Subitamente, a sensação de chegada de um outro alguém já era presença.Foi custoso pra ela entender o que uma pessoa podia trazer de novidade e poesia só por sorrir daquele jeito de quem se entrega à risada. Tinha bonitezas demais naquele interesse dele: arregalava o corpo pra ouvir a frase que ela dizia, sem precisar escolher o tema_ era só elogiar o céu ou o mar, ou a cor dos dois.

(E, na soberania dessa simplicidade, a coisa toda se deu.)

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Marla de Queiroz

domingo, julho 01, 2007

Manual de Instruções

Foto: Pedro Gomes
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Pode chegar mais perto e se aconchegar no meu colo.Vou escolher palavras-sussurro porque quando quero me fazer ouvir eu falo tão baixo:
Se for pra ser breve, que seja plenamente breve_ esse furacão que desacata a sensação de eternidade. Mas se for pra ser eterno, que seja ele mesmo, na carícia dos olhares que se demoram em silêncio pra dizer mais.Eu não temo nem dor, nem amor_ eu entro no barco e vou rio abaixo sem salva-vidas. Se a canoa virar, aprendo a nadar ou me afogo_eu sofro de excesso de fôlego.Por isso, não tema minha poesia: onde está minha força é também onde exponho minhas fraturas. (Palavra é moça cortejada demais e não admite desdém, quando ela flerta comigo, me entrego).Têm textos que causam febres, desenterram mágoas, reforçam a prisão na lembrança da história finda. Mas se eu propuser uma melodia mais doce, eles podem trazer pra perto da escrita a emoção indefinida e alfabetizar dores que ignoram curas, ensinar metáforas que dissolvem agonias, plantar um pouco de tolerância onde a raiva devastou.(Têm também textos que não dizem nada, que só conseguem macular o branco da página).

Eu sei que o que aprendi com a vida eu descobri que sabia ao escrever.
(Isso não deveria assustar pelo que tem de sagrado.)
Por favor, não tema minha poesia:
eu, definitivamente, não nasci pra me divertir
com a pessoa errada.
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Marla de Queiroz

terça-feira, junho 26, 2007

Poesia catada num sebo



Encontrou nas prateleiras de um sebo, pilhas de livros
com suas histórias despejadas nas dedicatórias.
Fragmentos de amores amarelecidos, vestiam palavras sem data:

Num Milan Kundera,
(um guardanapo e uma flor esmagada entre as páginas:)
“ A Insustentável Leveza do Ser”...só o título.

Num Manoel de Barros:
“Que teus-olhos-meus percorram estas páginas
ressarcidos das linhas que foram roubadas
pelos caminhos que os cupins traçaram.
E que te fizeram chorar feito menina,
com a cabeça apoiada entre as mãos,
antes de nos amarmos pela primeira vez.”

Num Jorge Luis Borges:
“ Uma lembrança discreta
(literária)
de noites que,
(amiúde)
entre farrapos de sono,
perdemos nossos corpos
nas cores de um mapa mundi.
Com carinho.
P.”

Numa Clarice Lispector:
“ Desfaço-me de tua musa,
porque os mistérios de Clarice
foram feitos pra tua curiosidade.
Sei que passeará teus olhos atentos
em cada grito abafado dessa mulher,
e que cada grifo teu trará pros nossos dias,
reflexões lindas e intermináveis.
Em tuas mãos agora:
meu livro dela,
meu amor teu."

Num Caio Fernando Abreu:
“Que te faça companhia nas noites
em que estarei ausente.
(Já sinto ciúmes dele)
Saudade já se faz presença.
Te amo (com erro sintático).
Volto logo.”

Num Guimarães Rosa:
“ Você é minha Diadorim.
Trouxe de longe pra ti
o sertão que nos fez amantes,
a literatura que nos aproximou tão de imediato.
Sou grato para sempre ao Rosa.”

Numa Hilda Hilst:
“ Tua poesia e a dela são casadas.
Me apaixonei pelas duas.”

Num Herman Hesse:
“ Por tuas febres, por tua fome de mais vida,
por tudo que dói em você pleno de existência
e pela beleza que bota nas coisas através das palavras.
(Sei que esse cara é meu rival, mas faça bom proveito.)”

Num Gabriel Garcia Márquez:
"Cem Anos de Solidão...uma declaração de amor às avessas..."

No livro de uma autora contemporânea desconhecida:
“Para o homem que me ensinou a escrever ( e viver) romances
quando eu só sabia tecer dramas."
*
*
*
Marla de Queiroz
*
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P.S.:
Esse post nasceu de uma situação que vivi. Estava voltando pra casa a pé e, como é de praxe, entro em todos os sebos que encontro pelo caminho e fico algum tempo fuçando livros...sou viciada naquele cheiro doce das páginas velhas.Em um deles, com um título que dizia algo sobre histórias de amor entre meninas, li uma dedicatória de uma moça tão apaixonada por outra, tão delicada, tão cheia de segredos íntimos de alguém entregue a uma história recém-descoberta e, pelo que parecia, recíproca, que fiquei pensando naquele livro ali, vendido pra um sebo com tanto amor pulsando vivo naquelas palavras adolescentes.Lembrei dos livros que ganhei, das dedicatórias que me escreveram, das coisas lindas que posso relembrar toda vez que os revisito. Fiquei pensando no desapego de quem se desfaz assim, não só de um livro, mas de uma história.Porque têm dedicatórias que compensam a leitura das páginas que nem sempre tocam fundo.
Esse texto nasceu do que posso imaginar quando pago por algum livro num sebo e trago pra casa uma dedicatória alheia.E, apesar do meu apego às minhas dedicatórias, já me conformei com a perda de vários livros que emprestei, porque ainda acredito que são eles quem procuram seus donos.