sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Batuque Final



Foto: Maria Flores

Não havia o desejo antecedendo o abraço dos corpos
havia apenas uns brindes, o tim-tim no bater de vários,
vários copos.
(Nada que não soterrasse um abismo antigo).
Não olhei pra baixo quando me lancei
da altura da nota que sua voz alcança
.
(Não gritei de medo por temer também o eco).
E, no rabisco de um passo de dança,

lançamos um tango,
e, no cigarro que acendo pra lembrar a cena,
te trago...comigo.


Nenhum drama, era carnaval:
me fantasiei de transgressora
pra me embrenhar nos teus cabelos com cheiro de banho
e desfrutar do que foi tão bom,
mas que já começou
no batuque final.
*
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Marla de Queiroz

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

CINZAS DE UM CARNAVAL

Foto: Maria Flores


Havia uma inquietação no ar.Alguma coisa misteriosa que impulsionava maus presságios.Vestígios da noite passada ainda compunham o cenário do quarto.A presença toda dele depois de tanta ausência.Os dois recém-saídos da mesma história, reféns de seus afetos, carências e, novamente aquela urgência de fome um do outro sendo consumada naquele espaço.Não sabia ao certo como foram parar ali, quem propôs o quê, quem pagou o táxi. Fora a quantidade de preservativos usados, pouca coisa tecia um detalhe ou outro.Olhou ao redor, o corpo afundado na cama, uma indisposição de retornar à rotina, a preguiça de fazer um café amargo pra curar a ressaca. Cortinas fechadas, um fiapo de dia recortava desenhos na parede azul.Em algum momento quis olhar pela janela: a paisagem cinza, não havia sol.E o passado instalado ao lado direito da cama, impregnando o lençol com o cheiro dele tão familiar, quase esquecido.

Relembrando o encontro na noite anterior,nem sabia que quando o viu ainda havia um pingo de saudade daqueles olhos bêbados.Estavam alegres no mesmo bloco, amigos perdidos na multidão. Fizeram-se companhia e depois do gole na cerveja quente, um beijo. Cansados, sentaram na areia contemplando o mar e dissertaram brevemente sobre suas vidas: tanto tempo, outros namoros terminados, referenciais desfeitos, uma ou outra paixão platônica, mas nada tão intenso, tão estável, duradouro.
“ Você encontrou, finalmente, a sua mulher ideal?”...” Sim, mas a perdi de vista quando não acreditei que eu a merecia”...” E você, amou alguém?”...”Talvez, parece que depois que acaba não se sabe mais ao certo o que nos uniu”.

Ele ainda dormia quando debruçou seus olhos naquela imagem e sentiu um restinho de saudade de abraçá-lo como antes, de encaixar-se naquele corpo, abandonada. Foi então que ele abriu os olhos.Aqueles olhos bêbados. Em seguida abriu um sorriso, os braços e a puxou pra perto. Beijou sua testa, seu rosto e disse um "bom dia" preguiçoso antes de vestir a roupa com uma expressão impune.” A gente se vê...”, disse juntando a chave, a carteira, o celular...” Te ligo qualquer dia desses...”fechando a porta atrás de si.Deixou-a com a frase evasiva ecoando, costurando desfechos.Deixou uma inquietação que se pensava superada.Agora restava recomeçar algo que parecia ter completado, teria que recomeçar a esquecê-lo.


Afundou a cabeça no travesseiro, cobriu o rosto com o lençol e tentou retomar a consciência de que os elementos que tinha não eram suficientes pra recompor um romance despedaçado.Talvez apenas lhe rendesse mais um desses poemas que doem.

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Marla de Queiroz.

P.S.: Texto escrito para revista DROPS RIO 2ª Edição.



quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Sofia De Lira (sobre a raiva)


Foto: Eduardo Carlos
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Ah, deixe-me reclamar um pouco de tudo e querer coisas absurdas como alfabetizar o sol! Eu sei quão bela é a vida, sei que as coisas que não são fáceis inda assim são simples.Mas quero berrar minhas angústias até fazer as pazes com meu silêncio novamente.
Ah, deixe-me experimentar essa ira e dar socos no ar até trincar o vento que vem de encontro aos meus passos dando mais peso e lentidão a minha caminhada.Meu grito ou choro não é falta de esperança, é um respeito profundo por mim quando me sinto fragilizada.Se estou dramática, ainda não cheguei aonde quero: quero ser trágica!

A inquietação tamanha desses dias todos me arrastou pra praia com papel, caneta e uma raiva enorme de tudo.Cheguei arrastando a cadeira, entediada, e o mar estava mais violento que eu, me redimindo. Tão agressivo, era capaz de engolir um corpo, uma gaivota e de cuspir cristais de sal na brisa doce.(Por que eu deveria estar mais calma que ele?) Fiquei foi com inveja do seu poder de arrebentar tudo com tamanha simplicidade e destreza.E de cuspir o lixo acumulado deixando na areia um retrato dos maus-tratos: restos de plástico, pombos e moscas sobrevoando a podridão.Porque, assim como ele, eu não engulo sapatos.

No meio de toda raiva sendo expulsa, pensei por que não se pode ser autobiográfica ou agressiva sem pedir desculpas com tanta antecedência. Quero só olhar, sem observar, sem absorver.Quero dizer sem atribuir juízos de valor, só pra desabafar.Quero poder sentir essa raiva sem ter que lidar com a indignação de quem me quer doce e positiva sempre porque se acostumou.E depois, quando a raiva for embora, não pretendo me resgatar, mas me reinventar e ficar o tempo que for necessário me redescobrindo...

Não queria ter de pedir licença pra honestidade neste espaço, mas seguindo a moral e os bons costumes, eu peço delicadamente:
Pra você que leu esse texto até aqui, por favor, se pretende comentá-lo ( não quero intimidar ninguém), não me deixe um consolo, um conselho ou termine com um "fique em paz".Não quero que me roubem um segundo dessa fase, desse instinto primitivo, ele é precioso.A paz eu conheço e ela não está ausente, só quero experimentar até aonde meu ser alcança, a totalidade. Eu quero estar plena de todas as emoções pra que elas não me governem, mas passem por mim. Quero me permitir cada segundo desse ranço, porque eu o sei tão transitório quanto o maior dos mais definitivos amores. E se ainda assim quiser deixar o seu rastro, me fale de tua dor, tua alegria, tua conquista, tua pendência, teus planos, tua raiva, me conte uma mania tua, compartilhe tuas belezas comigo para que eu possa aprender com elas.
E me deseje inspiração ....( a única coisa que quando falta, me tira a paz).

PS: Só lamento este texto ter sido escrito num dia de tanto sol.
PS2: Não lamento coisa alguma!
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sábado, fevereiro 10, 2007

Derramamento


Foto: Geisa
Dentro de mim, existe um Espaço Sagrado onde guardo minhas preciosidades.
Às vezes faço uma faxina lá e mudo tudo de lugar.Não é por maldade, é só vontade de ver um outro ângulo das coisas. Eu não gosto do olhar acostumado.Não gosto de ver um objeto num objeto, porque tudo pra mim tem entidade humana.E gente me tira o fôlego, vejo belezas demais quando amo, e amo sempre e tanto.
Às vezes eu desapareço mesmo, porque fico tão cansada.Fico tão cansada daquele cenário.Fico tão cansada daquele amor.Tão absurdada pelas coisas,me exaspero.Sempre é tanto.É que vivo num derramamento espesso de sentimento.Aí eu mudo o foco que é pra não cansar o outro também.Ou, às vezes eu não quero cuidar da ferida de ninguém, tão cansada que fico.Ou aquela alegria dele merece ser comemorada com outras pessoas porque estou no meu momento pleno de esvaziamento em que até a sedução me cansa.E só a solitude pode me acalmar.Por isso tão pouco escrevo.(Perdoe a carta não respondida).
Por isso durmo antes do sono.
Por isso, às vezes, tudo tão esquisito e ausente em mim.

Não sou sempre flor.
Às vezes espinho me define tão melhor.
Mas eu só espeto o dedo de quem acha que me tem nas mãos.
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Marla de Queiroz

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Sofia De Lira ( a personagem )... ou véspera de um Carnaval.

Gustav Klimt
Ela certamente poderá ser encontrada dentro de um quadro de Klimt,
nos bares com um Bukowski, num filme do Almodòvar,
numa música do Chico Buarque...
Seu despudor faria corar de vergonha Hilda Hilst,
sua sexualidade exacerbada encabularia Simone de Beauvoir.
Todas as tardes ela contempla o dia morrer na beira de um lago
namorando Narciso, esperando Godot.
Ela é aquela cujo sobrenome é verbo.

(Pode ser que alguma coisa dela fique entranhada até doer em você).

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

A eternidade de um breve instante.

Foto: Pedro Moreira

E, subitamente,

a chuva se desinteressou pela noite.

Num descuido de nuvens,

sobre o mar,

as estrelas encharcadas foram

rasgando um caminho

e uma lua menininha nasceu com cara de choro.

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Marla de Queiroz