segunda-feira, abril 21, 2014

O que restou




Então, tá tudo aí: um coração restou acelerado e desobediente, desaforado, inconveniente. Não se pode sistematizar sentimentos ou banalizar emoções: nele tudo está em sintonia com a hipérbole maciça e, para qualquer paixão inclemente, ele não sente a menor preguiça: se enrosca no osso da emoção, rói a carne, range os dentes, urra noturna e diariamente. Este coração está desgovernado, não se pode negociar um trecho de cuidado, uma brecha de precaução. Tudo o que ele abraça é barulho, imagem turva, ventania, comoção. Tá tudo aí: o ruído que você deixou e um resto de trecos atirados pelo chão. Tudo que as tempestades derrubaram ele abrigou. Veja quanto entulho, quantas verdades distorcidas, quanta indecisão. Então, tá tudo aí: um coração desatinado, indisciplinado, indiscreto, indócil, indecente. Tá enchendo o peito de velharia, entupindo a aorta de putaria, derramando pra tudo que é lado sarcasmo e rancor. Este coração foi tudo que restou: equivocado, anda chamando desilusão de amor. 


Marla de Queiroz

quinta-feira, abril 03, 2014

Sobre a Perversidade




O perigo da perversidade é que ela é muito sutil. Um ser perverso jamais te atacará diretamente. Ele vai saborear cada silêncio calculado para despertar sua agonia. Ele vai tentar tolher seus lugares íntimos até que não reste qualquer espaço para manobras. Ele vai te seduzir da maneira mais irresistível e depois te tratar com um descaso inexplicável, como se algo de errado tivesse acontecido, mas sem te dar quaisquer indícios do que possa ter acontecido. Ele será carismático com os outros, prestativo, mas demonstrará impaciência em responder à sua mais simples pergunta. Ele vai oscilar entre o tesão e a indiferença. Você se sentirá desejada quando o sufoco tiver tomado toda a sua alma e, totalmente desamparada quando o desejo demonstrado parecer esvaído nos primeiros suspiros da manhã. E o dia seguinte se tornará um longo e agonizante ano. Ele parecerá espirituoso, depois irônico, mas estará sendo absurdamente crítico e sarcástico. E te deixará tão confusa que você, por momentos, não saberá identificar a crueldade que há neste tipo de comportamento. Os perversos são viciados em jogos de poder e controle. Não sabem o porquê. Simplesmente precisam tentar te destituir da sua autoconfiança e autoestima até que você se torne refém, dependente, à beira do desespero.


É muito difícil identificar um ser perverso e, depois se livrar dele. Ele te tratará com uma bipolaridade emocional absoluta. E quando tudo parecer perdido, quando você tiver decidido de maneira explícita sua escolha por um afastamento ou desligamento da relação, ele te rondará da maneira mais amorosa possível tentando te convencer que a falta de sintonia anterior era um problema seu.

O perigo da perversidade é porque ela é muito sutil. E o único antídoto para se curar de uma relação doentia como esta é reunir toda a coragem que você jamais imaginou ter e partir com toda a convicção de que você não precisa continuar neste campo minado. Você pode escolher um lugar de paz. Você pode não ser presa de um predador voraz. Você não precisa se vestir de sangue para alimentar estes vampiros.

Esteja atenta. O perverso sempre parecerá um ser inofensivo e carismático. Com os outros. Apenas com os outros. E isto te deixará com uma imensa vontade de conquistar aquilo que ele fará questão de demonstrar que não está disponível para você. 

Marla de Queiroz

terça-feira, abril 01, 2014

DEPRESSÃO: um assunto muito sério


Depressão não é tristeza, melancolia, desânimo, mal-estar. É tudo isso junto e uma profunda dor causada pela falta de perspectiva de que algo de bom vai acontecer e melhorar nossas vidas. Depressão é mais comum do que se imagina e tem tratamento. Não adianta dizer a um deprimido para reagir, sair da cama, sair das drogas, fazer algo para se sentir feliz. Estas pessoas precisam de ajuda profissional e, se possível, espiritual para controlar este processo de faltas: de hormônios que provocam prazer e tornam a vida produtiva e sociável, de uma sensação de amparo e proteção espiritual. 

Eu tenho depressão desde criança. Ela é controlada porque busquei ajuda em todos os campos disponíveis e hoje convivo com ela de maneira amistosa: tenho uma vida produtiva, feliz, incomum, mas normal. Eu tenho ajuda espiritual, profissional e tenho a arte. Eu tenho amigos que me percebem porque me amam. Eu perdi amigos para a depressão. Eu perdi uma irmã também. Tenho perdido leitores. O índice de suicídio me assusta, mas me é altamente compreensível, pois, às vezes, nem a família sabe identificar ou lidar com esta doença. A gente não fica deprimido porque terminou um namoro: a gente fica triste. A gente não fica deprimido porque perdeu um emprego: a gente fica preocupado ou desorientado. A gente fica deprimido por uma profunda sensação de inadequação ao mundo, uma sensação de que não participamos ou pertencemos a nada. Certos fatores são apenas desencadeadores de uma dor muito mais grave: a existencial.

Vejo pessoas que estão tristes dizerem-se deprimidas e vice-versa. É preciso identificar e dar o nome certo a cada coisa. O fato de confundirmos estes sentimentos causa certa banalização da depressão. Vejo pessoas precisarem de ajuda urgente e darem cabo à própria vida porque ninguém as olhou atentamente a tempo de lhes oferecer uma ajuda adequada. Depressão é um luto por si mesmo em vida. 

Enfim, este texto é apenas um pedido para que estejam atentos aos amigos, familiares, ao Outro com mais amorosidade e interesse profundo. Às vezes, identificada a doença, um deprimido não vai segurar na sua mão e caminhar até um profissional com você, talvez seja preciso que por um momento você o carregue no colo até que ele possa caminhar sozinho novamente. A questão é: quanto lhe custa a vida de alguém que você tem apreço?

Desejo boas notícias.


Marla de Queiroz