sexta-feira, setembro 28, 2007

Proposta



Vem, que eu canto pra você as nossas chuvas
porque entendo esse nosso pacto com o vento.
Se nossos corações palpitarem em outras curvas e a gente se for,
é porque ainda nos nutrimos das possibilidades de outros caminhos.

(Mas, vem, que minha proposta é de um perpétuo movimento:
deste que nos faz vivos, confusos, certeiros, intensos, inteiros.)

Eu entendo essa roupa feita de jornadas.
Eu entendo essa alma impulsionada pela eterna busca.
Mas quando teu corpo inteiro só precisar de um aconchego,
te faço uma cama entre os meus seios

só pra você me contar sobre o fim do tempo da espera.

(Vem! Pra nos anteciparmos todas estas primaveras.)


*


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Marla de Queiroz

sábado, setembro 22, 2007

Uma vaga sensação de...



Foto: Graça Loureiro
E, de repente, ela sentiu uma saudade. Mas uma saudade tão frágil e delicada que vinha destituída de qualquer expectativa de encontro. Era uma saudade seca, oca, sem necessidade de notícias. Como se ela relembrasse uma infância que foi boa, mas que não queria repetir. A saudade, ela mesma, a palavra toda preenchida pela sensação, com rostos, cenários, detalhes tão íntimos, mas sem voz, sem qualquer barulho. Intransitiva e estéril. Fotografia sem foco. Desapegada como um monge. Um copo vazio.

E, de repente, ela tentou organizar a sensação vaga e etérea como quem tenta segurar um raio de sol entre os dedos. Mas parecia ter desaprendido a dizer coisas. A poesia se atirava dela como que preferindo um outro abismo. E as palavras flácidas tentavam se equilibrar no único caminho pontilhado que se apresentava: ela estava repleta de reticências e não sabia como preencher tantas lacunas. Óvulo sem útero. Céu vazio de luas.Vestido órfão de um corpo.

E, de repente, (...)
*
*
Marla de Queiroz

segunda-feira, setembro 17, 2007

Carta




Meu amor,


Escrevo da praia enquanto o esboço de uma tempestade absoluta me espreita. Mas com a primavera anunciada, o vento vai perdendo a força e o inverno dá seus últimos suspiros.O mar está confuso: movimentos indecisos, cores indefinidas e algas, muitas algas. Na maior parte dos dias é a claridade que acaricia o corpo da cidade e as pessoas ganham um tom maior de sol na pele.Eu queria te dar esta paisagem de presente.Mas como reunir todos os elementos deste dia como se fossem flores que se organiza num arranjo? Se eu pudesse, te faria um buquê de flor-de-chuva, de sêmen de vento, de ventre de terra semeada por verbo, verso e dessa água cristalina rabiscando transparências no é-terno...
(Mas também sei que se você fechar os olhos dentro do teu quarto, ainda poderá ver o horizonte que pintei... Eu descobri que todas as paisagens brotam do interno).

Começou a carta com tanto pudor que tentou falar sobre o tempo, mas logo o assunto acabou.
Do que poderia contar além da saudade daquelas sensações homéricas, de quando o corpo falava mais que sua poesia e ela não podia fotografar aquele orgasmo nem os espasmos vindos depois, nos músculos que se contraíam até à câimbra?Mas tudo seria um silêncio azul se ela não pudesse dizer e, naquele momento, suas palavras eram vermelho-fogo,vermelho-sangue, vermelho-aceso, líquido-espesso-quente cuidadosamente derramado.Só que as palavras não se aproximavam da sua ardência e quando escrevesse, tudo seria passado.E a solidão da escrita era esse enroscar de dedos na caneta...
Porque havia um oceano que separava as suas mãos do rosto dele.


*



Marla de Queiroz

quinta-feira, setembro 13, 2007

A segunda versão_ a do protagonista





Eu entendo a sua omissão ao publicar o nosso romance, só não entendo o que você chamou de "nossa história real”. Em momento algum você me perguntou se eu queria ser o protagonista disso tudo. E, de repente, me vi preso numa imagem, num rosto que você esculpiu, num temperamento, com desejos e personalidade que não eram meus.


Sempre gostei de você, da tua intensidade poética, mas quando me enfiou naquele capítulo com uma lua derramada de mel, senti enjôo e sono:eu não queria aquilo, aquele dia, naquele cenário com o par perfeito. Eu queria um porre num copo sujo e todos os cigarros que nunca fumei. Eu queria a companhia dos iconoclastas, as profundezas do obscuro_ (dessas necessidades que a alma tem vezenquando e que não existe delivery pra isso.)


Eu precisava ir, vivenciar e aprender. Não queria cheiro de xampu e maquiagem. Eu queria tragos de cachaça e alguma música triste na voz de um desafinado.Queria a quebra de página inconcebível, o verso mais embriagado, inovador e incoerente. Nem queria o clichê do futebol com os amigos, da prostituta de luxo me dando de graça. Queria tua revolta, a cuspida na cara, você fervendo de um medo sem camuflagens. Mas teu amor sempre foi higiênico demais, espiritualizado demais, saudável demais... Uma trepada tântrica com uma quase psicóloga-holística-bonita-e-ninfomaníaca-divertida-e-boêmia num boteco do Leblon....(não me excitava esse parágrafo.)


Eu era o karaokê na Lapa depois da sinuca. Um eremita. Você queria o super-homem-bom-de-cama-e-estiloso. Eu era a fratura exposta, o retrato da fragilidade, precisava do contato com aquela dor. E você, narradora onisciente, não me respeitou quando me enfiou numa praia bonita, me deu banho de mar pedindo pra eu alimentar o meu plexo solar, toalhas limpas cheirando a confort e um talento qualquer pra justificar sua dificuldade de se desvencilhar de mim... (mesmo sabendo que eu não era nada do que você havia idealizado).


Eu sei que você omitiu que publicaria um livro sobre o nosso romance, mas o que não percebeu é que a nossa história era real pra você, naquela hora, mas meu personagem não. A nossa história foi real pra nós dois, em todos os nossos momentos, mas não foi a mesma.E o que me restou foi guardar tuas ilusões na minha mochila pra partir, sem segredos. (Foi quando, finalmente, você resolveu perder a compostura tentando me arrancar das costas a história que omitiu dos seus leitores).

Já era tarde. Eu demorei muito tempo pra me libertar das tuas frases. Eu levava ali_ e só você sabia até então_tuas inseguranças e minhas recusas, minhas inseguranças e tuas compreensões e eternas justificativas pro que quer que eu diga ou faça. Sempre derramei minhas verdades sem dó nem piedade, nunca lancei mão de entrelinhas. Era a minha recusa à submissão de ser teu homem-alguma-coisa, belamente adjetivado com teu pronome possessivo predileto.Eu era o teu arquivo vivo.E um espetáculo na faixa de pedestres debaixo do sinal vermelho-verde, amarelo.E a frustração da metáfora irrealizada no meio de um soneto quase impecável, de tanto amor incerto. Eu não podia oferecer nada além de um fiapo de dia no meio da madrugada.(Insultuoso foi você querer de mim algo que sabia que eu não podia ou queria dar).


Agora é tarde pra que eu vire o personagem adorável do teu livro.Escrevi no meu o direito de resposta aos teus poemas distorcidos.Nossas histórias clandestinas revelei com adornos de verdade e pimenta. (Enjoei do teu chá de camomila).


O que te doeu, entenda, não foi o que eu te trouxe à tona indo embora, mas o que fiz por mim quando fui.Eu não te abandonei, eu apenas respeitei essa vontade que tive de ir.

Você queria um romance, eu fui um conto breve sem pontuações definidas.
(Ou alguém que sempre vai te amar da maneira errada).

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Marla de Queiroz
*

(continua...)


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Marla de Queiroz

domingo, setembro 09, 2007

Um retrato

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Meu menino alfabetizado pelo oceano,
me acena ao longe adornado pelas ondas.
Tenho em mim esta parcela de mar:
ele, todos os azuis e um branco-espuma-breve.

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Marla de Queiroz

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P.S.: Lembrem-se, dia 11 de setembro, escreva uma dedicatória para um desconhecido e deixe um livro pela cidade.
Por favor, quem puder, me ajude na divulgação.

quarta-feira, setembro 05, 2007

Uma balada para dois*


Desconheço o autor do desenho...(que pena!)

Tem tanta dor dentro desses copos,
tem tanto ardor dentro desses corpos
e tanto, tanto nesse “vezenquando”
que vezenquando tudo é encanto.

(Mas o ideal ainda tão distante
interrompe
o toque, o gole, o trago, a verve, o canto).

Por ser real
por estar tão próximo
e por ser possível,
há de parecer
tosco
pouco
óbvio
(mesmo, vezenquando, sendo incrível).

Talvez, um dia,
quem sabe,
um reencontro:
no bar da esquina,
na praia,
na fila do banco,
no trânsito.
Ela com o seu parceiro ideal,
ele com a sua mulher perfeita:
duas pessoas es-colhidas
para caberem nas suas antigas
e comportadas frases feitas.

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Marla de Queiroz.


*Poema publicado no Blogo de Sete Cabeças há meses...
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P.S.: Amores, dia 11 de setembro eu gostaria de relançar uma campanha que começou há uns anos, mas que depois foi perdendo o ibope.
É o seguinte: neste dia, saia de casa com um livro, qualquer um que tenha tido importância na tua vida.Escolha um usado, compre o mesmo no sebo, sei lá, mas escolha um livro interessante, não esses que a gente tem, nunca leu e quer se livrar.Enfim, escreva uma dedicatória pra um desconhecido e abandone em algum ponto da cidade: num ônibus, num banco de praça,num carrinho de supermercado...de preferência num lugar coberto, em caso de chuva.
Faço isso algumas vezes a cada 3 meses e a sensação é deliciosa.Se todos participarem, pode ser que você também encontre um livro por aí, com uma dedicatória misteriosamente sedutora.
Por favor, quem puder, me ajude na divulgação.

segunda-feira, setembro 03, 2007

Adolescências


Foto: Helder Ribeiro

Ah, eu só queria que Eduardo me olhasse como quando ele examina uma tesoura cega, mas vive entretido com aquele amolador de alicates.Eu escrevi um poema pra ele com tanta ternura: botou ao lado da tesoura afiada antes de ler, o vento levou com pena do coitado.Eu fiquei observando de longe, ele nem percebeu que minhas palavras iam embora.No dia seguinte, levei um pedaço grande de bolo...deu a primeira mordida sem me olhar e disse obrigado com a boca cheia.Pelo que me ensinaram, ele foi mal-educado.Aí, na aula de pintura, tentei derramar cuidadosamente uma imagem, o tema era livre.Quis pintar a voz de Eduardo. Tive que fechar os olhos.Me lambuzei toda de tinta, parecia ele fazendo uma carícia em mim.Pendurei na parede, tava meio confuso, mas tão colorido. (A voz de Eduardo é mais bonita que os olhos, esses vejo pouco, já que quase não me olha, mas a outra é limpa, parecendo um filete de sol atravessando uma música) .Aí fiz questão de perder as minhas chaves pra Eduardo mudar minha fechadura.Tivemos que trocar tudo, minha mãe já desconfiada.Só porque Eduardo é pobre, ela ralhou comigo. Nem ligo, ele é tão bonito e, para mim, é um artista.Mas Eduardo fez todo o serviço apressado, nem aceitou o suco........lembrei do quadro, queria dar de presente, e o elevador já tinha levado Eduardo embora, que nem o vento fez com meu poema.


Gostei tanto de Eduardo que não me olhava nunca, que um dia na escola, o Igor deixou um bilhete dentro do meu caderno.Nunca tinha reparado nele gostando de mim em silêncio, eu parecia uma tesoura cega.Depois eu percebi, que cego mesmo era o Eduardo.

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Marla de Queiroz