quinta-feira, novembro 20, 2008

Descompassos

Foto: Rosalina Afonso


Não é porque te amo que, de uma vida inteira, eu selecionaria apenas esta página. Há tanto pra contar além desse altruísmo: há tanta solidão na sede por poemas e muita ansiedade num tempo de esperas. Sei pouco sobre mim, descubro agora. E fico a olhar, vazia, para os lados. Sei pouco de você, eu admito, conheço apenas o que quis saber de nós. Mas tem um egoísmo que corrói: e eu danço com a vida, os dias e as paisagens. Você denunciando os contrários: parece que a leveza me aprisiona, parece que o peso te abraça. Um medo de perder para a alegria. Ou de só possuir pelo cansaço.
Enquanto eu tentava me lembrar onde guardei meus brincos (tua gravata), minha docilidade (tua carência), minha saia rodada (tua camisa azul), meu desapego (tua indignação), você catava conchas à beira-mar. À beira de um mar que te emprestei. (E, na individualidade sem afagos que consertem, talvez esteja a nossa nudez.)
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Marla de Queiroz

quarta-feira, novembro 12, 2008

Extensidades

Foto: Ornella Erminio
(...)e quando virei o rosto vi meu sorriso nos lábios dele...
(" Grande Sertão: Veredas"_ Guimarães Rosa)

O jeito que ele me olha é que me inspira e desgoverna. Um jeito que me conhece no derramado de dedos que convidam. De quando eu peço abraço quando ele quer me dar, mas faço tudo quase num contorcimento de dor, e ele acha bom eu ser intensa. E a voz sem sossego, o corpo pronto e quente sempre. E, se ele demorou tanto, nós sabemos: amor também precisa amadurecer ou maturar na arnica, feito remédio. Nunca tive muita impaciência na espera, ele sabe. Pude pular de galho em galho e ir embora quando meu coração não queria ficar, enquanto. E, das vezes que quis ficar e não tive espaço, entendi. Funciona quase como o mesmo modo de quem faz ninho para um só passarinho, aquele todo especial. Mas eu exerci meu par de asas. E fui feliz com as paisagens que sobrevoei. Aí, quando eu menos esperava, ele chegou encompridando alegrias tão amenas, tão bestinhas. Fui compreendendo aquela falta de desespero. Eu achando graça na saudade. Eu perdendo o peso da lembrança só pra rir de tudo. Eu ficando leve. Eu sentindo sono logo na infância da noite. Porque meu coração estava, enfim, descansado. Eu achando bom meu coração pousar assim: decidido e destrambelhado.

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Marla de Queiroz

quinta-feira, novembro 06, 2008

Outra Estação

Foto: José Ferreira


Eu esperava
e a esperança era tão precisa que calculava:
Você viria na primavera mais propícia.

Eu esperava um encontro tão romântico,
pra desmitificar tua estátua de concreto.
Eu esperava que nada mais pudesse vir a ser um desafeto.

E veio fluido como fonte
E veio ávido, como fome
Mas se tornou um chato no papel de “Monge”.

E havia um romance, mas vaidoso.
E, em vez de amar, ficava dando pistas:
assim, feito uma celebridade, um artista.

Eu fui cansando, ficando com preguiça:
Havia idealizado a estabilidade de um amor,
e apareceu você, mais um turista.

Eu esperava então, que fosse embora logo.
Que nem tirasse a roupa, já que nunca a máscara.
Que me deixasse em paz a tempos de um verão.

Se fosse a primavera assim, a mais propícia,
queria eu então outra estação:
mais divertida, leve, colorida
ou, pelo menos, muito mais promíscua.

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Marla de Queiroz