terça-feira, julho 31, 2007

Celebração

Foto: Bruno Antão


E mesmo que o dia raie
(arraia desatada pelo rio vertical)
numa correnteza líquida de frio,
onde aja qualquer dor vai desaguar um choro:
levando mágoas, lavando estradas,
iluminando a nova estada,
trazendo um jeito de estar feliz
e na-morada.

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Marla de Queiroz

sábado, julho 28, 2007

Somente

Foto: Catarina Cruz

Não percebia quando o desconforto era emocional: era o estômago que doía, a boca que secava, eram as mãos frias.Não era raiva, não era angústia, não era medo.Para ela era físico, nunca o emotivo. Dizia “adeus”, assim, como quem dispensa a sobremesa pra tomar um chope.Dizia “sim” ou “não” como quem escolhe a cor do esmalte.
Um dia, quando bateu o vazio, elaborou rapidamente uma saudade. Mas não sabia de quem, de onde, do quê. Não precisava. Era ela e a saudade de qualquer coisa que ela trocou por um chope, de qualquer noite que ela substituiu por uma tarde, de qualquer emoção que ela nem se lembrava mais. Mas que trazia uma certa languidez pro olhar e uma tensão pra expressão facial que ela pretendia.
Só pra valorizar a maquiagem mesmo.

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Marla de Queiroz


segunda-feira, julho 23, 2007

Clave de Sol-riso



Foto: Rosalina Afonso


As mãos dele, sinfonia, música clássica urdida por ímpetos de tempestades.
Mãos anárquicas regendo suspiros: atrevimento de dedos.
(Ravel, o bolero_ partitura de ofegâncias).

As mãos dele, maestria, afinadas
arriscam-se pelas trilhas do meu corpo,as mais sonoras.
Delicadas, me calam os dramas fazendo do toque argumento fatal.
Eloqüentes, proliferam os enigmas da não-resistência.

Enquanto eu, hesitante, tento costurar melodias em nuvens
com a minha poesia,
ele, astuto, arrebenta o sol com as mãos,
solfejando melodias-brisas,
usando apenas o violão.

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Marla de Queiroz



quinta-feira, julho 19, 2007

Uma paisagem


Foto: CAV


No mirante do Leme um silêncio espreita a menina com o grito guardado nos olhos.À espera de trovões, nuvens se aninham ao norte, escuras e solidárias. O oceano berra a impossibilidade do mergulho, mas surfistas confiam na maternidade das águas. (Há tempos o sol deslizou pelas costas do morro e mordeu a isca do mar, feito peixe ingênuo).A areia sem pegadas, dia anoitecido, ventania arrastando histórias e páginas de algum livro. E uma solidão tão exata.
O poeta dispensa a caneta pra contemplar. E, como quem se ilumina por uma alegria secreta e sem barulho, levanta da pedra e, súbito, segue à procura do Tempo que se desinteressou pelas horas.
(Agora, só um caderno abandonado completa a paisagem).

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Marla de Queiroz
P.S.: Confiram essa BONITEZA!

quarta-feira, julho 18, 2007

Luto

Foto:José Gama




Faz um mês e meio que perdi a minha irmã Inês. Eu estava em processo de recuperação, não quis passar isto nos meus textos porque a morte sempre me falou de vida. Da vida que tenho, que preciso viver com integridade, com totalidade. E cuido pra não machucar minha poesia, sei da responsabilidade que tem quem escreve e publica.Mas hoje eu perdi um dos meus melhores amigos, o Dani Boy. E a dor que sinto é absurda.A respiração fica massacrada pela mão do luto. O sofrimento se materializa no corpo causando um desconforto físico. A alma fica estilhaçada, tentando reunir forças pra amparar o corpo.O descompasso das lágrimas, o grito pelo alívio. E nada cura, nada resolve, nada ampara. Nada me faz acreditar nessa perda.Ele tinha a minha idade e seu coração parou. Simplesmente parou de bater. Coisas de gente que vive com muita intensidade.Mas ao contrário de achar que a vida é injusta, isso me dá pressa de viver.Uma pressa tremenda de ser mais feliz, de desenvolver o meu potencial amoroso,de publicar meu livro, de perdoar e pedir perdão. Uma pressa tão grande de ser uma pessoa melhor.E de viver com tanta honestidade.

Nem sei se deveria compartilhar isso com vocês.Mas os que me acompanham a tanto tempo, sabem que a vida não é feita só de nascimentos.Sei que o Dani cumpriu sua missão lindamente e que já está sendo orientado e preparado pro seu grande processo de evolução espiritual pelos Guias de Luz. Peço a Deus que me dê sabedoria para desapegar-me da saudade que sinto e que sentirei sempre. Para que eu não seja egoísta querendo-o no meu cotidiano presente e ativo como sempre foi. Que eu saiba simplesmente agradecer ao fato de ter podido conviver intensamente com um passarinho tão livre e leve. Meu amigo mais fanfarrão, a companhia mais deliciosa e generosa.

Um dia escrevi um depoimento pra ele no orkut, logo no início da nossa amizade. Fica aqui minha despedida.
E que venha a vida com todas as suas polaridades e maiores belezas.


Dani Boy é a intensidade materializada. As histórias dele são fantásticas e ele é todo hiperbólico para enfatizá-las. Lindo, engraçado, e um boêmio em toda a acepção da palavra. O álcool selou nossa inimizade. É o único com quem me arrisco a beber na segunda-feira pra ficar com raiva dele no dia seguinte. E a gente tenta fazer as pazes a semana inteira bebendo cerveja no Léo. Dani Boy conhece tudo do Chico Buarque e não tem inibição nenhuma em cantar um samba todo desafinado...Ele é leonino. E joga capoeira sem se alongar depois de tomar todas. E dá tanto valor à amizade que faz cada um se sentir o mais especial do planeta. Dani Boy é o fanfarrão mais carinhoso e divertido que conheço. E faz a posição da rã como ninguém...hehehehe...Ele é um folgado, mas meu melhor companheiro. E, pensando bem, com um inimigo desses, quem precisa de amigos?


Eu preciso entender que o sol se põe, às vezes, no auge de um dia de praia. E que nada detém a noite. Perder alguém muito querido, é como perder o controle de todas as situações. A gente sempre acha que poderia ter tomado mais um chope junto, que poderia ter estado mais presente, que poderia ter feito algo mais incrível. Mas a gente se esquece é da fragilidade das coisas e de que alguém cheio de vida jamais vai inspirar a morte. A gente não tem como saber qual será a perda ou a vitória dos próximos dias.
É preciso seguir, confiante de que a escolha que fizemos é a melhor. E que a incerteza é o que nos impulsiona ainda, mesmo que cause tanto desconforto.

Me perdoem o desabafo, é que uma sucessão de perdas é muito pesado mesmo e sempre usei a palavra como uma das fontes de salvação e amparo. Não se impressionem com nada...isso faz parte da vida e quero acreditar que nem é a parte mais importante.
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Marla de Queiroz

quinta-feira, julho 12, 2007

Sobre meninas

Foto: sweetcharade


Meninas passeiam seus vestidos de mãos dadas. Despertam curiosidades nos olhares salivantes dos moços viris e das boquiabertas senhorinhas. Bailarinas da sedução, borboleteiam imaginações alheias porque desabitaram as convenções do amor público pra se libertarem da camisa-de-força com etiqueta.

Meninas são líquidas de águas temperadas. Ultrapassaram os epílogos do prazer pra mergulhar na emergência do ardor com afeto.E, delicadas na carícia sem ingenuidade, confundem-se no abraço das pernas enveredadas pela malícia da fome.E, na dança dessas deusas líricas,o roçar de seios e o beijo de todos os lábios.
Meninas passeiam por aí, lúdicas, exalando o feromônio doce do segredo.

(E vagueiam pelo lume sem fardos... porque são fadas.)
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Marla de Queiroz

sábado, julho 07, 2007

Um Par

Foto: Ana Meireles


Parecendo que o dia principiava uma ponta de nostalgia, mas já era um outro alguém chegando. A voz não tava clara, pressentimentos são confusos como violão que desconhece a melodia. Era como se precisasse elaborar antes de tudo, o sentimento que ela ia trazer, aquela voz.Então, ela determinou com a convicção de alguém que quer parar de beber, de sofrer, de fumar, de comer carne ou de qualquer coisa que incomode de algum jeito, que seria apenas saudável e recíproco.Tava cansada dos olhos afogados na ausência de um perfume ou de uma espécie de lirismo estúpido, como sempre.(Percebeu o final do sufoco na mudança do foco). O que o dia queria dela, trazendo as cores do olhar do passado? Não queria mais aquilo.Tava cansada.Ficou lembrando cenas que nem quis contar porque deu raiva. Que se assim o fim, melhor que assim o fosse.Mas sabia mesmo é que o verde que viria, reflorestaria aqueles olhos de imensas esperanças.Achou boa a sensação que a imagem trouxe e guardou num gesto: fez um movimento de mãos no ar e trouxe pro peito.Sorriu e calou. (E os olhos permeados do mistério bom).

Subitamente, a sensação de chegada de um outro alguém já era presença.Foi custoso pra ela entender o que uma pessoa podia trazer de novidade e poesia só por sorrir daquele jeito de quem se entrega à risada. Tinha bonitezas demais naquele interesse dele: arregalava o corpo pra ouvir a frase que ela dizia, sem precisar escolher o tema_ era só elogiar o céu ou o mar, ou a cor dos dois.

(E, na soberania dessa simplicidade, a coisa toda se deu.)

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Marla de Queiroz

domingo, julho 01, 2007

Manual de Instruções

Foto: Pedro Gomes
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Pode chegar mais perto e se aconchegar no meu colo.Vou escolher palavras-sussurro porque quando quero me fazer ouvir eu falo tão baixo:
Se for pra ser breve, que seja plenamente breve_ esse furacão que desacata a sensação de eternidade. Mas se for pra ser eterno, que seja ele mesmo, na carícia dos olhares que se demoram em silêncio pra dizer mais.Eu não temo nem dor, nem amor_ eu entro no barco e vou rio abaixo sem salva-vidas. Se a canoa virar, aprendo a nadar ou me afogo_eu sofro de excesso de fôlego.Por isso, não tema minha poesia: onde está minha força é também onde exponho minhas fraturas. (Palavra é moça cortejada demais e não admite desdém, quando ela flerta comigo, me entrego).Têm textos que causam febres, desenterram mágoas, reforçam a prisão na lembrança da história finda. Mas se eu propuser uma melodia mais doce, eles podem trazer pra perto da escrita a emoção indefinida e alfabetizar dores que ignoram curas, ensinar metáforas que dissolvem agonias, plantar um pouco de tolerância onde a raiva devastou.(Têm também textos que não dizem nada, que só conseguem macular o branco da página).

Eu sei que o que aprendi com a vida eu descobri que sabia ao escrever.
(Isso não deveria assustar pelo que tem de sagrado.)
Por favor, não tema minha poesia:
eu, definitivamente, não nasci pra me divertir
com a pessoa errada.
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Marla de Queiroz