quinta-feira, agosto 30, 2007

Dois dedos de prosa


Foto: Pedro Moreira



Tá vendo aquele moço ali, dona? É meu homem.Ninguém tem mais intimidade com o mato que ele.Ninguém tem mais intimidade com o mar que ele.Ninguém passeia em qualquer canto solitário dessa natureza de meu Deus com tanta tranquilidade.Nem parece que foi parido de um ventre, parece que brotou da terra. Depois dessas florestas e de todas essas águas que ele conhece, o lugar que ele mais prefere é meu corpo.Nossa querência é das enormes.Ele com essa cara de bravo, ninguém desconfia, que macho mais doce.Mas eu sei que nessa pele queimada de sol tem mar demais e uma fome escondida entre nossas quatro paredes, entre nossas pedras na cachoeira, entre nossas pausas pra comer o peixe que ele pescou e assou.Eu esperando todo o tempo, cuidando da casa, lavando as vasilhas, um pé apoiado no tornozelo, mania que tenho.Ele sempre chega por trás, tentando não fazer barulho, mas eu sinto antes e finjo que não percebi.Ele gosta de achar que tem o dom dessa surpresa.

Esse moço, dona, já me deu trabalho. Foi difícil domar, cavalo doido solto procurando rapariga pra montar sem sela.Eu tive que quase não perdoar a primeira safadeza dele, se engraçando todo com a branquela azeda da rua da frente. Eu me fiz de besta.Mas depois que ele já tava bem lambuzado do assanhamento, tranquei as coisas dele do lado de fora da casa pra nunca mais abrir a porta. Deixei chorar, levar banana da terra pra mim, joguei tudo pros cachorros. Joguei fora até as presilhas que eu queria tanto e ele me deu pra eu usar nas festas. Eu tava machucada, dona, tava atarantada demais com aquela traição.

Pois aquele moço teve que chorar na minha porta, tava embebedado, é fato, mas parecia menino maltrapilho, cinco dias pelos bares, nem na casa do amigo ele não voltava mais.Banho só de mar.E a mesma roupa encardida das andanças.Rondando minha casa, chamando meu nome, dizendo palavras de amor, todo arrependido. Deixei ele sofrer mais de duas luas inteiras, porque eu gostava dele,dona, mas meu coração, quando ouvia aquele choramingar arrependido na minha janela, sentia era uma sapituca de raiva que eu me contorcia toda pra não jogar a água fervida do banho todinha nele.Quase costurei o nome da azeda que ele se engraçou na boca de um sapo, mas depois tive um esclarecimento na minha razão: que mal não se faz nem se deseja pra ninguém_ volta em dobro, já me dizia meu avô, Deus o tenha.

Foi que um dia, no forró lá no galpão de palha de seu Benevides, eu tava toda enfeitada na minha sede de vingança de fazer o mesmo, na frente dele, da cidade inteira. Pra magoar bem pisado aquele coração sem jeito. E teve uma hora, tocou aquela música de quando a gente namorou pela primeira vez. Aí me alembrei dele cantando pra mim, cara de menino levado,falando que eu era a morena mais bonita da festa, eu toda acreditada. Mas a lábia dele já era famosa, dona. A mulherada toda se enfileirava pra ser a próxima das aventuras.E foi aí que eu ia aproveitar pra dançar com aquele João Alves, da loja de ferramentas, que já me queria desde muito tempo.E vi meu homem, pensei que ia puxar briga, mas não: ele me olhou com uma tristeza, uma tristeza tão escura. Nunca vi um olhar tão adoecido, tão lamentoso.Parecendo que o mar inteiro sangrava.Só dele imaginar que eu ia me abraçar com o João naquela música que era tão nossa, dava pra ver o peito dele se arrebentando por dentro naquela olhada firme que ele me deu. Tive pena, não, dona.Tive foi o meu amor voltando, eu querendo cuidar pra ele nunca mais me olhar assim.Daquela dor que eu vi nele, nem gosto de alembrar.

Pois esse homem é tão meu agora, dona, que até enjoa, às vezes.Faz de tudo e mais um pouco pra eu não brigar de jeito nenhum.Até me ajuda com as coisas de casa. Eu já tive só mais um namorado, que foi antes dele.Um violeiro que me encantou pela voz, quando a gente acendia as fogueiras e ele era o centro das atenções cantando as canções sertanejas que eu mais gostava.Mas me entregar mesmo, de não resistir a essas fomes da carne, foi só com meu homem.Que até hoje ele ciúma desse meu primeiro. Disse que vai aprender a tocar violão pro outro não ter qualidade nenhuma que ele não tenha.Eu fico é rindo dessas bestagens.Mas no fundo eu gosto dele achar que nunca vai me conquistar direito, por inteiro, senão a coisa vai ficando abandonada, sabe, dona?Olha ele vindo aí, todo faceiro...deixa eu me aprumar, dona...Tenho que me ajeitar. Hoje é noite de lua cheia em nossa casa...
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Marla de Queiroz

sábado, agosto 25, 2007

A primeira versão_ a da autora

Foto: Mar de Sonhos

Eu omiti que ia publicar um livro com a nossa história real. Foi de pirraça e de amor não correspondido que eu escrevi aquilo tudo. Mas saiba, eu cuidava pro meu coração não acreditar naquela raiva, você sabe, eu não sinto assim, eu não sou assim. Eu só consegui, mesmo com meu coração tão apertado, falar do amor do jeito que a gente acreditou um dia nas primeiras frases. Depois tive que escolher cada uma daquelas palavras ácidas porque não podia levar teu personagem pra guilhotina_ o protagonista não pode morrer no meio da trama. Mas eu não sabia mais o que fazer com você, eu queria desistir do teu personagem porque me doía inteira ele sendo. Escrevi desgostosa tuas desventuras, entenda, eu era a narradora onisciente, eu era deus naquela ocasião e você havia me magoado tanto na página 143.Pode parecer loucura, mas não fui eu quem escolheu você me abandonar naquele café metido à besta, nunca tomei um café que custasse tão caro só pra chorar depois em meio àquela gente cheia de pose. Não podia ser num cenário mais mal-composto. Como autora, eu pensei que pudesse ser a mulher mais incrível do livro, a mais sedutora.Mas parece que teu personagem foi me dominando, querendo me magoar em público.E, quando eu achava que tinha todo o controle da situação, você me surpreendeu no final do capítulo cinco, querendo enfiar tua vida numa mochila e ganhar o mundo fora das minhas páginas. Você querendo todas as mulheres que poderiam ter sido minhas amigas. Desculpa eu ter sentido tanta raiva, mas as pessoas vivem essas coisas, até as mais espiritualizadas.Eu tive muita raiva de ser a narradora de uma história que eu não controlava mais. Você podia ter me poupado da sua autonomia, mas saiu, no meio do parágrafo, atravessando as ruas, saltando minhas vírgulas, tropeçando minhas aspas, desrespeitando meus parênteses. Eu tinha escrito uma cena na praia, no finalzinho da tarde, essas coisas que englobam uma lua inédita e cadernos espalhados em cima de uma canga colorida enquanto o casal toma um banho de mar num clima romântico.Mas a sua rebeldia me fez correr atrás de você e discutir a relação num capítulo inteiro, em cima daquela faixa de pedestre, tentando arrancar tua mochila enquanto os motoristas buzinavam furiosos por causa da baixaria debaixo do sinal vermelho-verde.Você bagunçou todo o meu roteiro.Foi por isso que dificultei a tua vida e te dei mais defeitos que charme.Eu queria ferir tua vaidade usando teu nome e sobrenome verdadeiros para que não houvesse dúvidas de que era sobre você que eu estava falando.E soterrei todas as suas qualidades naquele bloco de texto.Foi por isso que meu final feliz incluiu um casamento com um diplomata que não era você, no mesmo dia em que te fiz perder o avião pra Londres.

Eu omiti que ia publicar um livro com a nossa história real porque eu não queria que você descobrisse, antes da primeira edição esgotada, que a tua crueldade ia me render um best-seller.
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(continua...)
Marla de Queiroz

segunda-feira, agosto 20, 2007

O Inusitado


Foto: Maria Flores
E lá estava ele naquela noite, na mesma festa, encostado na espera de alguém, de alguma coisa.Não havíamos combinado aquele encontro, portanto, eu seria o inusitado.E lá estava ele, sem saber o que fazer com as mãos desde que parou de fumar.Parecia nem notar que todos se divertiam, os olhos baixos sem observar.Não pude identificar se sua expressão era de indiferença ou tristeza, talvez nostalgia de qualquer época em que sentia mais disposição pras coisas mundanas.Era ele ali, deslocado, encostado na insistência de querer ser o que já não era.De qualquer forma, estava ali, no canto, disponível e mortal. E eu que não tinha mais qualquer apego àquela história, poderia surgir como uma breve alegria, dessas que passam a noite em claro com alguém só pra dar um fôlego novo pra retomada da realidade.
(Sei que observei tanto, que alguma coisa trouxe o olhar dele pra mim. Sorri, ele também).

E lá estávamos nós, na mesma casa: tantas palavras derramadas nos ouvidos, na língua. Os dedos dele escutando meus seios taquicardíacos.E ele sabendo o que fazer com as mãos desde que parou de fumar. Os olhos firmes, dentro dos meus. Era ele sendo o que estava, alguém disponível e mortal.Pude identificar a expressão de desejo. Meus quadris encaixados em suas coxas, escalando seu corpo lentamente, adiando o ápice, fazendo suspenses tolos. E lá estávamos nós: dedos e línguas, sonhos e poros, sussurros e supiros, suor e saudade, pulsação em todas as partes. Então, finalmente, o ápice. E o vinho que estava na taça e depois no umbigo,agora no sofá.Uma mancha que arrancaria um risinho cúmplice e safado quando fosse notada no dia seguinte depois que a alegria já tivesse ido embora...

E lá estava eu: “a alegria” virando a esquina num dia de tanto sol.
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Marla de Queiroz


quarta-feira, agosto 15, 2007

Flores de Inverno, em verso.



O sol se pôs dentro dos nossos copos de cerveja.Espalhados sobre o mar, os últimos raios dourados: líquidos, dançantes...o resto da água cor de chumbo, mercúrio de termômetro como quando a gente era criança e estava febril.E eu o vejo tão bonito agora, com a saudade engatilhada no fundo dos olhos pra sentir quando eu deixar pra trás nenhuma promessa.
(Poderíamos falar por horas sobre tudo que nos atraiu, mas nosso silêncio sorria).
O céu azul,o vento frio, flores de inverno.Ele me agasalhou num abraço.
(Não fomos feitos um para o outro, é fato, mas talvez valha a pena nos refazermos).
Tudo que sabemos sobre nós foi descoberto pelos nossos corpos.
(Às vezes, o que parece ser uma superficialidade tem belezas honestas e profundas que escapariam em longas conversas inúteis e bem articuladas).
Eu sei que quando ele me toca, minhas retinas se enchem de saliva. Como quando uma boca quer.
E dizer é tão pouco perto de.

( E esse prazer que, de tão imenso, consegue doer em mim. Porque vai além de todas as expectativas do meu desejo que já era grande: o corpo não agüenta certas surpresas quando ele está tão cansado de não ter nenhuma ...Inda bem que a gente se adapta a tudo, em Búzios...;-)

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Marla de Queiroz

quinta-feira, agosto 09, 2007

Diâmetro

Foto: Luiz Carlos de Carvalho

Volta logo, meu amor!
Eu só escrevo por não saber o que fazer com as mãos
quando o nosso abraço termina.
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Marla de Queiroz

sexta-feira, agosto 03, 2007

Depois da tempestade


Foto: Rafaela

Talvez ele não saiba que aquela dor que ele causou, calou os olhos dela violentamente por uns tempos.Isso não é crime, é carma: magoar alguém assim, dentro do melhor vestido, remover com lágrimas o rímel cuidadosamente passado, deixar tão descrente alguém que achava a vida mágica...

Talvez ele nem desconfie que quando ele disse eu vou embora e ela tudo bem, logo que se deram as costas, ela respirou fundo uma, duas, três vezes, colocou quatro gotas de floral de Bach embaixo da língua e se afundou na tristeza escutando Killing Me Softly da Roberta Flack e Como Vai Você? do Roberto Carlos.E que passou sete dias lendo Nietzsche revoltada com o “último homem” e discordando do “Pequeno Príncipe” de Exupéry. Entendeu perfeitamente o I CHING quando disse que não era favorável atravessar a grande água e foi dormir sem sono, meditando cura e mantrando plenitude nas caminhadas matinais que só fazia se houvesse chuva. (Mas tentou suicídio comendo o último pedaço de pizza de calabresa esquecida, desde aquele dia, dentro do forno apagado...Porque morrer de amor seria um exagero).

Talvez ele nem imagine que ela parou de sair com os amigos pra beber vinho em casa escondido, no café-da-manhã. E escreveu vinte e nove cartas sobre a raiva e nunca enviou porque era moça espiritualista e tinha que manter o discurso saudável do “isto também passará”.(Não mandou, mas depois da segunda garrafa de vinho às três da tarde, foi por um triz).

Talvez ele nunca saiba que ela mudou os móveis de lugar, mandou queimar o colchão que já conhecia tanto o peso dos dois, e deu pro morador de rua o edredom que testemunhara tantos abraços noturnos.Dormiu no chão, quis mudar de religião, leu Lacan e criticou Freud pelo seu processo lento e generalizador.Pensou em mudar de curso, de profissão, de cidade.Quis mudar de si, já que seu corpo era a casa de um só sentimento.Fez uma viagem, não quis conhecer ninguém, posou de antipática porque estava apática.Se escondeu da lua cheia, fez do seu quarto um campo de concentração e depois se mudou para sala.Trancou todas as portas pra não entrar qualquer ilusão.Por tanto tempo era ela e sua tristeza intransitiva.

O que ele também não sabe porque nem ela sabia, é que um dia ela acordaria assim, vazia daquele amor.A dor exaustiva de cabeceira havia cessado, deixada no fundo do poço.Parou de se alimentar daquela porção individual de desilusão e enterrou o passado num túmulo desconhecido, para que não houvesse a menor possibilidade de revisitá-lo.


(Ele quase soube disto quando pensou que ainda estava recente para ensaiar uma recaída,um flashback. Mas para ela, que só soube na hora do reencontro tão almejado,já era tarde.)

Havia criado um mantra: No momento em que me dei inteira, ele me deu as costas.Isso não pode continuar supervalorizando uma saudade.Ser uma mulher curada de um amor, dependendo das circunstâncias, pode ser melhor que ser uma mulher amada...por ele.

E o seu melhor vestido pedia uma nova chance e um rímel à prova dágua.



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Marla de Queiroz