domingo, março 30, 2008

Outono

Foto: Sonia


Peneiro no silêncio algum gesto.
Há vida pra contar, mas falta um jeito.
Palavras tão ausentes, as unhas sem vermelho,
só há vulcões por dentro.

Já é outono, meu amor,
estação em que me despeço de todos os meus gritos.
Há fortes luas e um sol ameno
e a pele da cidade acariciada pelo vento.

(Carícia é palavra que escorre pêlos-dedos-língua).

Alguma nostalgia nos finais-de-tarde.
Eu brinco de poesia na frente do espelho.
Os olhos sem segredos, a boca tão urgente
e um pequeno amor trazido pela brisa .

Já é outono, meu amor, e a palavra em si já é aveludada:
merlot bem encorpado, inverno é cabernet demais e um tanto ácido.

Então me abraça, meu amor,
que eu conto pra você os meus anseios
e deixo que você repouse sua cabeça
entre os meus seios.


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Marla de Queiroz

quarta-feira, março 12, 2008

Das descobertas


Foto: Fernando Figueiredo


Arrumando minha casa de dentro juntei estilhaços de um tempo em que, cansada de sóis vazios e dessas tempestades de agonia, pra esquecer um amor antigo, arremessei meu coração contra a parede. Eu descobri que algumas pessoas se juntam não por afeto, mas por tristeza encomendada. Que certas coisas que deveriam afastar, às vezes aproximam.

Quando arrumei minha casa de dentro tinham muitas declarações de amor de gente que já não me amava mais pelo caminho. E quando eu estava prestes a começar uma vida nova, tropeçava nesse passado e nos referenciais antigos e voltava para lá que era um lugar aparentemente mais seguro. E ergui tantas paredes rabiscadas pelo medo.

Descobri, quando abri as janelas, que uma chuva muito forte também tem som de aplausos. Que na pauta dos meus lábios só cabem palavras macias. Que há que se beber do outro também a fonte de idéias para que tudo não se resuma num encontro incandescente de peles porque devemos explorar todas as qualidades do desejo.

Eu descobri que tenho um jeito de gostar exagerando os fatos e que a ficção é o que mais participa da minha realidade. Mas que sempre fica um rastro na minha pele se alguém se demora nas carícias. E que não se pode ter a força de uma represa retendo seus próprios líquidos.

Quando arrumei minha casa de dentro eu descobri que essa é uma tarefa infinita. E há que se reordenar as coisas incansavelmente pra se ter espaço pruma nova cor. E que uma boa base impede um desmoronamento, mas que a implosão da estrutura inteira, às vezes, é a coisa mais sábia a se fazer em determinados momentos.

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Marla de Queiroz

terça-feira, março 04, 2008

Antes do anoitecer



Foto: Graça Loureiro


Na hora mais bonita da tarde, estamos eu e você. Deitamos sobre os lençóis do tempo os nossos corpos acariciados pelo sol de outrora. Lá fora o mar explode em fúria e o horizonte, essa linha vertebral das águas, permanece imóvel e calmo.Nessa hora mais bonita da tarde eu sinto você respirar no meu pescoço enquanto teus dedos direitos entrelaçam os meus e a tua mão esquerda em concha veste um dos meus seios.E o coração repousa tranqüilo, sem sobressaltos, porque a nossa sede é delicada.Lá fora cristais de sal temperam o final do dia, aqui dentro, o perfume de um quase silêncio adoça o nosso cansaço.Nessa hora mais bonita da tarde, aqui dentro, adormecemos lentamente no encaixe mais perfeito enquanto, lá fora, estrelas começam a cair tão solitárias...

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Marla de Queiroz