Açafrão pra mim sempre foi associado ao amor. Minha mãe foi criada na roça. Ela era bruta, não era dada aos afetos, aprendeu a braveza desde muito nova pra se defender. Ela dizia sobre si mesma: “tá pra nascer alguém pra me fazer medo, fui criada com tutano de boi, não foi com danoninho, não”. Eu te amo, dito assim, ela só aprendeu a dizer na velhice. Antes, toda a sua demonstração de amor vinha da comida. Cozinhar era um ato sagrado, minha mãe se demorava socando o caroço do coentro no pilão com o alho, cortando grossas rodelas de cebola e, a partir daí qualquer coisa que ela refogasse junto trazia a cura dentro.
O meu prato predileto era frango com molho de açafrão. Certa vez, eu tive uma depressão muito profunda. Fiquei tantos dias sem comer que quando senti fome realmente, eu não conseguia mais. Eu chorava de fome, mas a comida não passava na garganta. Minha mãe fazia banho de ervas, me benzia com arruda, me dava surra com espada de São Jorge pra tirar o quebranto e eu aproveitava pra chorar bem alto até acalmar o peito de cansaço e sono. Foram dias mergulhada numa tristeza muito escura e funda e minha mãe fazia vigília na cabeceira da minha cama. Às vezes eu acordava e ela estava chorando e conversando com Deus. Quando eu me agitava durante o sono, ela fazia um cafuné muito amoroso, e sem conseguir dizer a frase que fala do amor, ela prometia: “quando você melhorar, mamãe vai fazer um frango com açafrão muito, muito gostoso”. Minha mãe ainda não sabia o que era Venlafaxina.
Anos depois fui morar fora. Quando eu vinha visita-la, ela deixava aquele frango marinando 2 dias, a casa inteira perfumada por aquele tempero amarelo ouro. Eu ficava 3 dias comendo a mesma coisa, nunca enjoei. Ninguém enjoa do amor. Ela ficava me observando comer, cheia de satisfação, perguntando toda hora se “tava bom de sal”. E assim o açafrão virou também comida festiva: era o cardápio do meu aniversário ou apenas de um dia em que ela se sentisse tão preenchida pelo amor maternal.
Eu nunca encontrei frango com açafrão no cardápio de nenhum restaurante. Certo dia, eu senti um desejo tão imenso daquele sabor que desenterrei a receita da memória, fui tentando trazer os gestos de minha mãe pra manipulação dos temperos, limpei o frango talvez mais do que o necessário, levei quase um dia inteiro cozinhando a comida que ela fazia em 40 minutos e era como se ela estivesse ali me ensinando cada etapa da receita. Naquele dia, completava um ano da sua partida. Agora o açafrão tinha gosto também de saudade.
Marla de Queiroz