sexta-feira, novembro 02, 2018

Açafrão

Açafrão pra mim sempre foi associado ao amor. Minha mãe foi criada na roça. Ela era bruta, não era dada aos afetos, aprendeu a braveza desde muito nova pra se defender. Ela dizia sobre si mesma: “tá pra nascer alguém pra me fazer medo, fui criada com tutano de boi, não foi com danoninho, não”. Eu te amo, dito assim, ela só aprendeu a dizer na velhice. Antes, toda a sua demonstração de amor vinha da comida. Cozinhar era um ato sagrado, minha mãe se demorava socando o caroço do coentro no pilão com o alho, cortando grossas rodelas de cebola e, a partir daí qualquer coisa que ela refogasse junto trazia a cura dentro.
O meu prato predileto era frango com molho de açafrão. Certa vez, eu tive uma depressão muito profunda. Fiquei tantos dias sem comer que quando senti fome realmente, eu não conseguia mais. Eu chorava de fome, mas a comida não passava na garganta. Minha mãe fazia banho de ervas, me benzia com arruda, me dava surra com espada de São Jorge pra tirar o quebranto e eu aproveitava pra chorar bem alto até acalmar o peito de cansaço e sono. Foram dias mergulhada numa tristeza muito escura e funda e minha mãe fazia vigília na cabeceira da minha cama. Às vezes eu acordava e ela estava chorando e conversando com Deus. Quando eu me agitava durante o sono, ela fazia um cafuné muito amoroso, e sem conseguir dizer a frase que fala do amor, ela prometia: “quando você melhorar, mamãe vai fazer um frango com açafrão muito, muito gostoso”. Minha mãe ainda não sabia o que era Venlafaxina.
Anos depois fui morar fora. Quando eu vinha visita-la, ela deixava aquele frango marinando 2 dias, a casa inteira perfumada por aquele tempero amarelo ouro. Eu ficava 3 dias comendo a mesma coisa, nunca enjoei. Ninguém enjoa do amor. Ela ficava me observando comer, cheia de satisfação, perguntando toda hora se “tava bom de sal”. E assim o açafrão virou também comida festiva: era o cardápio do meu aniversário ou apenas de um dia em que ela se sentisse tão preenchida pelo amor maternal.
Eu nunca encontrei frango com açafrão no cardápio de nenhum restaurante. Certo dia, eu senti um desejo tão imenso daquele sabor que desenterrei a receita da memória, fui tentando trazer os gestos de minha mãe pra manipulação dos temperos, limpei o frango talvez mais do que o necessário, levei quase um dia inteiro cozinhando a comida que ela fazia em 40 minutos e era como se ela estivesse ali me ensinando cada etapa da receita. Naquele dia, completava um ano da sua partida. Agora o açafrão tinha gosto também de saudade.
Marla de Queiroz


segunda-feira, abril 21, 2014

O que restou




Então, tá tudo aí: um coração restou acelerado e desobediente, desaforado, inconveniente. Não se pode sistematizar sentimentos ou banalizar emoções: nele tudo está em sintonia com a hipérbole maciça e, para qualquer paixão inclemente, ele não sente a menor preguiça: se enrosca no osso da emoção, rói a carne, range os dentes, urra noturna e diariamente. Este coração está desgovernado, não se pode negociar um trecho de cuidado, uma brecha de precaução. Tudo o que ele abraça é barulho, imagem turva, ventania, comoção. Tá tudo aí: o ruído que você deixou e um resto de trecos atirados pelo chão. Tudo que as tempestades derrubaram ele abrigou. Veja quanto entulho, quantas verdades distorcidas, quanta indecisão. Então, tá tudo aí: um coração desatinado, indisciplinado, indiscreto, indócil, indecente. Tá enchendo o peito de velharia, entupindo a aorta de putaria, derramando pra tudo que é lado sarcasmo e rancor. Este coração foi tudo que restou: equivocado, anda chamando desilusão de amor. 


Marla de Queiroz

quinta-feira, abril 03, 2014

Sobre a Perversidade




O perigo da perversidade é que ela é muito sutil. Um ser perverso jamais te atacará diretamente. Ele vai saborear cada silêncio calculado para despertar sua agonia. Ele vai tentar tolher seus lugares íntimos até que não reste qualquer espaço para manobras. Ele vai te seduzir da maneira mais irresistível e depois te tratar com um descaso inexplicável, como se algo de errado tivesse acontecido, mas sem te dar quaisquer indícios do que possa ter acontecido. Ele será carismático com os outros, prestativo, mas demonstrará impaciência em responder à sua mais simples pergunta. Ele vai oscilar entre o tesão e a indiferença. Você se sentirá desejada quando o sufoco tiver tomado toda a sua alma e, totalmente desamparada quando o desejo demonstrado parecer esvaído nos primeiros suspiros da manhã. E o dia seguinte se tornará um longo e agonizante ano. Ele parecerá espirituoso, depois irônico, mas estará sendo absurdamente crítico e sarcástico. E te deixará tão confusa que você, por momentos, não saberá identificar a crueldade que há neste tipo de comportamento. Os perversos são viciados em jogos de poder e controle. Não sabem o porquê. Simplesmente precisam tentar te destituir da sua autoconfiança e autoestima até que você se torne refém, dependente, à beira do desespero.


É muito difícil identificar um ser perverso e, depois se livrar dele. Ele te tratará com uma bipolaridade emocional absoluta. E quando tudo parecer perdido, quando você tiver decidido de maneira explícita sua escolha por um afastamento ou desligamento da relação, ele te rondará da maneira mais amorosa possível tentando te convencer que a falta de sintonia anterior era um problema seu.

O perigo da perversidade é porque ela é muito sutil. E o único antídoto para se curar de uma relação doentia como esta é reunir toda a coragem que você jamais imaginou ter e partir com toda a convicção de que você não precisa continuar neste campo minado. Você pode escolher um lugar de paz. Você pode não ser presa de um predador voraz. Você não precisa se vestir de sangue para alimentar estes vampiros.

Esteja atenta. O perverso sempre parecerá um ser inofensivo e carismático. Com os outros. Apenas com os outros. E isto te deixará com uma imensa vontade de conquistar aquilo que ele fará questão de demonstrar que não está disponível para você. 

Marla de Queiroz

terça-feira, abril 01, 2014

DEPRESSÃO: um assunto muito sério


Depressão não é tristeza, melancolia, desânimo, mal-estar. É tudo isso junto e uma profunda dor causada pela falta de perspectiva de que algo de bom vai acontecer e melhorar nossas vidas. Depressão é mais comum do que se imagina e tem tratamento. Não adianta dizer a um deprimido para reagir, sair da cama, sair das drogas, fazer algo para se sentir feliz. Estas pessoas precisam de ajuda profissional e, se possível, espiritual para controlar este processo de faltas: de hormônios que provocam prazer e tornam a vida produtiva e sociável, de uma sensação de amparo e proteção espiritual. 

Eu tenho depressão desde criança. Ela é controlada porque busquei ajuda em todos os campos disponíveis e hoje convivo com ela de maneira amistosa: tenho uma vida produtiva, feliz, incomum, mas normal. Eu tenho ajuda espiritual, profissional e tenho a arte. Eu tenho amigos que me percebem porque me amam. Eu perdi amigos para a depressão. Eu perdi uma irmã também. Tenho perdido leitores. O índice de suicídio me assusta, mas me é altamente compreensível, pois, às vezes, nem a família sabe identificar ou lidar com esta doença. A gente não fica deprimido porque terminou um namoro: a gente fica triste. A gente não fica deprimido porque perdeu um emprego: a gente fica preocupado ou desorientado. A gente fica deprimido por uma profunda sensação de inadequação ao mundo, uma sensação de que não participamos ou pertencemos a nada. Certos fatores são apenas desencadeadores de uma dor muito mais grave: a existencial.

Vejo pessoas que estão tristes dizerem-se deprimidas e vice-versa. É preciso identificar e dar o nome certo a cada coisa. O fato de confundirmos estes sentimentos causa certa banalização da depressão. Vejo pessoas precisarem de ajuda urgente e darem cabo à própria vida porque ninguém as olhou atentamente a tempo de lhes oferecer uma ajuda adequada. Depressão é um luto por si mesmo em vida. 

Enfim, este texto é apenas um pedido para que estejam atentos aos amigos, familiares, ao Outro com mais amorosidade e interesse profundo. Às vezes, identificada a doença, um deprimido não vai segurar na sua mão e caminhar até um profissional com você, talvez seja preciso que por um momento você o carregue no colo até que ele possa caminhar sozinho novamente. A questão é: quanto lhe custa a vida de alguém que você tem apreço?

Desejo boas notícias.


Marla de Queiroz 

quarta-feira, fevereiro 26, 2014

A desocupação do teu abraço



Quanto se poderia dizer que teríamos para viver além do que tivemos? Eu te perdoei e fui embora e você questionou minha atitude. Mas eu precisava ir para perdoar também a mim. Eu não podia mais esperar que algo bom acontecesse depois de uma sucessão de breus. E talvez o medo desta escuridão fosse mais factual que o meu amor. E por te perdoar, não te levei comigo, entende? Não houve uma desistência, mas a escolha de um caminho outro: neste que, agora eu sei, seus passos não admitiriam trilhar. Por isso a desocupação do teu abraço: deixei ali o meu perdão e segui para a ocupação dos meus espaços. 


Guiada pelo amor? Não sei. Talvez pelo cansaço.

Marla de Queiroz

terça-feira, fevereiro 25, 2014

SOBRE PARADOXOS



A dor é brutal simplesmente porque a situação é delicadíssima. É um paradoxo adoecer de saudade por se desvencilhar de alguém para tentar se manter emocionalmente saudável. As histórias se compõem com projeções demais e muito do que somos fica lá com o Outro. E, geralmente, o nosso lado mais bonito. Não que faltasse Beleza naquele alguém que agora virou apenas a inicial de um nome que evitamos pronunciar, mas as condições de temperatura e pressão foram ingratas. A disposição para os ajustes necessários foi insuficiente. Poderia se dizer que havia ali um relacionamento preguiçoso, como um dia que não quer amanhecer e se estende nebuloso e indeciso, com fiapos de sol e nesgas de nuvens negras. E uma dor brutal surge com uma sensação delicadíssima de alívio que quase não queremos considerar. Esquecemos que, muitas vezes, a sensação de vazio é somente a falta daquele peso que confrangia o peito ora sim, ora mais ou menos. Mas nos mantinha ocupados. E que chamávamos de amor uma codependência intensa.
Essa dor brutal.

Marla de Queiroz

sexta-feira, janeiro 31, 2014

MUDANÇAS



Desta vez eu sigo, mas não sem olhar para trás. Encaixoto minhas coisas, tantos livros, tantos sentimentos, tantas roupas, tantas sensações, tantos papéis, tanta saudade. De abstrato, cada detalhe dos movimentos letárgicos de uma gata inquieta, ardida e amorosa: Mafalda com seu coraçãozinho na boca. Não pertenço mais a esta casa. 

Desta vez eu sigo, sem olhar para trás para um novo desafio profissional. Alguma coisa em mim clama por mais aprendizado, posto que o que aprendi já dominei. E ainda há tanto espaço para o que não sei. Mas guardo os amigos que fiz, os que foram e os que ficarão no burburinho cotidiano das conversas atravessadas e teclas de computador. O cheiro de café no meio da tarde.

Também sigo, com frio no estômago, para o parto do meu terceiro livro. Mentalmente eu folheio os olhos do leitor que os receberá pelo correio. Minha caligrafia nos envelopes. E um abraço guardado em cada frase. Meu suor escorrido em cada página.

Sigo pelos caminhos que a vida teceu: com todas as mudanças bruscas, algumas coisas sobreviveram, mas algo em mim morreu.

Levo o amor por tudo, sempre.
Uma esperança entusiasmada.
A gratidão que me acompanha.
E um desajeito de dizer adeus.

Marla de Queiroz

(sus)penso em passos de (mu)dança.

quinta-feira, janeiro 23, 2014

Certas tristezas




Certas tristezas doem mais porque vêm com uma delicadeza infinita. É como se, no lugar do grito, apenas o seu peito espremido, mas mudo. O choro não é contido, mas a voz embargada. A lágrima fica presa na sua expressão e os olhos lânguidos, meio adoecidos, uma beleza de fragilidade na feição. 



Certas tristezas são muito discretas. Seus hematomas são familiares, suas fraturas não são expostas. E, de tão explícitas, pouco se mostram. Você fica melancólica, distante, quase indiferente ao resto de tudo. Você sabe que vai passar, mas naquele momento não acredita: de tão inapetente, apenas contempla sem saborear a escuridão cobrindo o mundo. É dor que dói em silêncio sem o alvoroço da aflição: espécie de tristeza concisa.

É tristeza que dá sono, o cansaço prematuramente perdoado. A vontade de se recolher e se acolher por ter algo que nem ao menos possa ser compartilhado.

Certas tristezas vêm como a fotografia de uma árvore frondosa e solitária... 
Numa paisagem bonita.

Certas tristezas grudam em nós à espera de uma boa notícia.

Marla de Queiroz

terça-feira, janeiro 21, 2014

Deixa em paz o meu caos



Eu não consigo mais acomodar você dentro de mim depois da pasmaceira de tempo perdido, de jogo barato, de sedução cheia de recato. A mesma atitude de todos eles, todos os que eu não quis porque provavelmente não iam me querer por muito tempo. Não fiquei com raiva porque eu não tenho espaço o suficiente aqui dentro para ter raiva de muitas coisas e, naquele momento, eu tava com irritada com algo que segurou meu foco. Mas eu senti uma preguiça profunda quando te vi ali, plantado embaixo da minha janela fazendo pose de ciumento arrependido. Fazendo cara de marido ressentido. Vítima tirana da minha democracia: “vamos decidir juntos o que a gente vai fazer nesta tarde vazia? Desta vida vadia? Desta cara emburrada? Deste jeito escroto de querer que eu seja exatamente o contrário daquilo que te atraiu no início?”.

Eu não consigo mais acomodar você dentro de mim porque eu fiquei bem cansada da tua autopiedade. Desta falta de dignidade. Da necessidade de seduzir pra me distrair e se autoafirmar. Sua mania de tentar despertar emoções e tentar tirar tudo do seu indevido lugar.

E por não conseguir mais te acomodar aqui dentro de mim, eu te peço:
Por favor, deixa em paz o meu caos.

Marla de Queiroz

domingo, janeiro 19, 2014

Otimismo X Pessimismo



Ocasionalmente eu reflito sobre o que leva uma pessoa a ser pessimista. Penso que talvez seja uma posição confortável, por mais aflita que me pareça. Esperar o pior porque “se acontecer o melhor será lucro”, é a justificativa de muitos. 

Eu escolhi o otimismo e nunca fui desamparada por ele. Mas ser otimista dá trabalho pra caramba. Todo dia você atrai gente de luz, experiências divinas e uma rasteira. Todo dia um abraço amoroso e um tombo de gente que nem se esperava. O otimista nunca espera pelo pior e, quando ele vem, ele respira fundo, retoma o fiapinho de força que sobrou daquela frustração e entrega pro Universo. Só que ele não pode ser imediatista, não pode ter pressa, tem que trabalhar arduamente a ansiedade e entregar, confiar. Ser otimista é uma canseira infinita: deslocar o pensamento magoado para esperança de uma circunstância favorável que resgate a confiança no Mundo, na Vida, na Humanidade.

Enquanto isso, o pessimista assiste, confortavelmente, esta batalha alheia: e se sente superior porque já espera conformado que tudo dê errado “porque isto é ser realista”. (Para o pessimista, o otimista não passa de um ser ingênuo fadado ao sofrimento).

Quanto a mim, vivo uma verdadeira aeróbica mental, espiritual. Crio diariamente mantras de evolução e tentava, incansavelmente, colocar ação nas minhas palavras, ser coerente com o meu posicionamento otimista até que isto virou um hábito e foi introjetado. Mas, palavra de otimista: dá trabalho pra caramba ser uma pessoa melhor quando tanta gente tenta tirar proveito disso.

A sorte é que deu sorte ser assim. Até hoje pelo menos.

Marla de Queiroz

P.S.: Certa vez li esse trecho (não lembro o autor) que repito mentalmente todas as vezes em que a minha crença no ser humano fica abalada:

“Ninguém está contra você: todos estão a favor de si mesmos.”

quinta-feira, janeiro 16, 2014

Todos os sentidos


As frases estavam arrepiadas por causa do assunto. E nada tinha sido dito ainda, só pensado. Se bem que a voz do olhar sensual, quando sussurrante, desamarra qualquer diálogo indecente: e apenas o cenário vestia os personagens. Era o suficiente. E o suficiente é tão preciso. Foi quando a fala desatou nas palavras: úmidas de língua. E a voz do olhar emudeceu: fechados os olhos. Tato, olfato, paladar no ato. Tudo refazia todos os sentidos. Era sentimento derramando. Era tanto pra tudo que é lado.


Marla de Queiroz 

terça-feira, dezembro 17, 2013

ELOGIO À DOR



Que possam se doer em paz os que sofrem: por angústias existenciais, desamor ou qualquer coisa que pareça banal. Que possam, simplesmente, silenciar e não sorrir naquele dia. Que possam entrar em contato profundo com o trecho machucado de sua vida, com a garganta magoada pelo choro engolido, com a vontade da desistência. E que, a partir disto, possam qualquer coisa, inclusive decidir o que fazer com isso: pode ser que tanto, pode ser que nada. Mas, sobretudo, que percebam a não obrigação de cumprir o imperativo milenar do “reaja, melhore esta cara, vamos viver!”, pois a vida é esta poça de lama também. Então, que sejam respeitados em sua dor os que sofrem e que não sejam importunados senão por um abraço, ou talvez nem isso. Respeitem seus cansaços. Não cobrem luz da sombra. Que possam se doer em paz enquanto seres sentimentais: ao menos não fizeram uso de anestésicos emocionais. 



Marla de Queiroz

segunda-feira, dezembro 16, 2013

Meio assim


Então tem essa coisa de Roberto Carlos sempre nas minhas aflições de fim de tarde. Passo o dia gargalhando e depois uma saudade de qualquer coisa me agarra. E o tom melancólico do momento-mergulho-o-que-estou-fazendo-da-minha-própria-existência. Percebo: minha nau é frágil. Todo discurso do tá-tudo-bem-sempre-ou-nem-tá-tão-bom-mas-vai-melhorar-logo, cadê? Minhas angústias já não cabem numa “hashtag”.

Então tem a música, tanta coisa pra ler e escrever e um monte de gente legal pra abraçar. Mas por que essa tarde em fiapinhos de agonia na garganta? E as noites balbuciando suas imensidões de todos-os-travesseiros-só-pra-mim desatando vontades de choros que eu meu recuso a adjetivar.

Então tá todo mundo meio fodido: de grana, de amor, da garganta, de saudade. E eu fico desejando “bom dia” torcendo para que isto retorne-em-dobro-deus-me-ouça. E fico alisando a superfície das coisas querendo me apegar a elas como quem não-tá-mais-se-importando-se-o-mundo-vai-explodir. Para que pensar tanto no que sinto e sentir tanto o que eu penso?

Então tá tudo-meio-assim-assado, bobagens bobagens bobagens e café gelado. E eu sentindo essa porra taquicardiando o meu peito e esse coração ardido, confrangido, sem o rosto do sujeito: dor que nem tá sabendo doer direito.

Então tá tudo tão Roberto Carlos e que tudo-o-mais-vá-pro-inferno nesses últimos suspiros do inverno.

Marla de Queiroz


terça-feira, julho 30, 2013

Sobre o abandono



Frequenta o abandono quem vive um quase namoro, fantasia reciprocidade, aceita abraço frouxo, conversa sem olho no olho, ausência de carícia.

Frequenta o abandono quem chama a rejeição de saudade, implora por qualquer fiapo de atenção, enfeita sua própria desvantagem. 

Frequenta o abandono quem vê na recusa uma possibilidade de mudança ignorando os sinais óbvios da distância.

Frequenta o abandono quem não reconhece que ser bem tratada não é um mérito, mas uma condição e segue chamando migalhas de banquete.

Frequenta o abandono com assiduidade quem se contenta com tão pouco que o Outro para mantê-la descobre que pode dar cada vez menos.

Frequenta o abandono quem não está disponível pra viver um romance porque namora um drama.

Marla de Queiroz

segunda-feira, julho 29, 2013

Mantra



Eu me torno emocionalmente saudável quando consigo desconstruir todas as tolices sobre amores salva-vidas e jogar a ideia surreal do príncipe encantado no lixo. Eu me torno emocionalmente saudável quando acredito que namorar deve ser leve mesmo quando intenso, e divertido mesmo quando há um sério comprometimento. Eu me torno emocionalmente saudável quando o que me ocupa é a minha vida e não a reação que tenho ao comportamento alheio. Eu me torno emocionalmente saudável quando percebo que determinada história não me abrange, me deixa inadequada, fere a minha autoestima e sinto que isto é o suficiente para eu tentar ser feliz e me abrir para outras possibilidades. Eu me torno emocionalmente saudável quando escolho os meus parceiros pelo que me agregam de luz e crescimento, não pelo desafio que me trazem quando se mostram emocionalmente indisponíveis ou abertos para viverem outras relações que não a nossa. Eu me torno emocionalmente saudável quando me permito ficar sozinha até atrair um alguém que esteja disposto a trocar, desbravar paisagens juntos, que esteja inteiro no lugar que escolheu. Eu me torno emocionalmente saudável quando, estar ou não estar com alguém sexo-afetivamente, não se torna a prioridade da minha vida, mas somente um dos meus desejos. Eu me torno emocionalmente saudável quando aprendo a dar nome aos meus sentimentos: e não confundo posse com excitação, dependência com paixão, rejeição com confusão alheia... 


Eu me torno emocionalmente saudável quando dou amor, não carência.

Livrai-me do que desbota a minha lucidez e da alienação de achar que a felicidade está no Outro e não em mim. Que seja assim.

Marla de Queiroz

terça-feira, julho 09, 2013

Plural



Não me compreendem. Principalmente ele: “Como pode um ser tão singular interessar-se sempre pelos plurais?”, pergunta. Mas tenho me sentido em paz. Não sofro por amor, apenas sinto. As saudades não me machucam. Traições são irrelevantes, prezo pela lealdade. Desinteressam-me as relações convencionais. Minhas paixões continuam extremadas e temperando meu comportamento, mas tenho experienciado solitariamente meus estados. Temo fazer mal ao Outro com minhas hipérboles e, ao mesmo tempo, sei quão meu é todo este processo.

R. me acha paradoxalmente sensível, mas desalmada. Explico que procuro dar aquilo que preciso, não o que querem de mim. E desejam minha alma, mas eu só entrego o meu corpo: minha alma é propriedade da minha escrita. As palavras me governam, não há como libertar-me disto: meu inferno particular guarda este aconchego.

Ontem, chorei antes de dormir. Chorei por falta de qualquer emoção, o peito estava vazio e a conformidade me entristeceu. Hoje, apesar de todas as nuvens cor de chumbo, acordei leve, esfuziante e seduzível. Mas lembro que R. nunca vai me perdoar por não ter sido ele. Por não ter tido o tempo que precisava. Por não ter causado qualquer sensação que me tirasse da zona de conforto. Por não ter estado dentro do meu corpo nem ter arrancado qualquer suspiro de paixão. R. nunca saberá o meu sabor além da sua imaginação.

Respiro fundo olhando pela vidraça o vento alvoroçado. Percebo a crosta de poeira sobre meus livros, revisito alguns capítulos, penso num ensaio de fotos absolutamente original, prendo-me nas imagens e me divirto infantilmente com as cenas. Todos os telefones estão tocando. Não os atendo, estou ausente do mundo de fora agora. B. deve estar chegando, tem a chave de casa. Quero arrebatá-lo de prazer, fazer amor com alarde.

(R., me perdoa por eu não precisar do teu perdão. Você chegou tarde).


Marla de Queiroz 

sábado, julho 06, 2013

SUPERAÇÃO



Trago no corpo
Cicatrizes subcutâneas.
Trago no olhar
Uma tristeza subterrânea
Que o meu sorriso
Se empenhou
Em aniquilar.

Eu nunca fui vítima de nada
Mesmo quando me afoguei
Por não saber nadar.
Eu escolhi o mergulho
E corri o risco
De vivenciar minhas emoções
Em alto mar.

Trago na alma
Alegrias decorrentes
De uma parca memória.
Tenho um passado pesado
Mas reescrevi minha história.

Trago no peito
Apenas amor, gratidão.
A vida me ensinou
Que sobreviver à derrota
É uma grande vitória:
Superação.


Marla de Queiroz 

sábado, junho 29, 2013

Sem recalques




As minhas entregas são definitivas no agora para sempre hoje. Não me importa o seu medo, teus motivos, tuas fugas. Eu me entorno no que faço, viro a coisa inteira, não tomo a atitude, me torno a própria. Eu não escolhi a minha intensidade, ela veio com muita personalidade e uma quase autonomia. Não pretendo o gozo, busco o Nirvana. Sou flexível ou radical por uma questão de experiência. Eu sobrevivo às frustrações e me responsabilizo pelas minhas desistências. A minha adaptabilidade foi conquistada através de uma profunda reflexão, o que não quer dizer que eu aja por conveniência se não estiver em consonância com a minha essência. Pode parecer arrogância: tantas coisas se parecem com o que não são. Não abrevio minhas emoções, não interrompo meus desejos, sou objetiva nas minhas querências. Não banalizo minhas angústias e sofro como qualquer ser humano por questões tão corriqueiras como rejeição e todas estas coisas que nos fazem olhar para a vida, por um instante, com certo cansaço e desânimo. Mas corro os riscos e banco a minha história, pois a escrevo e reescrevo quantas vezes for preciso. 


Por isso, antes de me julgar, faça as pazes contigo.

Marla de Queiroz

quinta-feira, junho 13, 2013

Carta para M.


Meu querido M.,

Estou tão cansada. Estou tão, tão cansada! Minha vida tem sido um amontoado de palavras, M. Quase não falo, mas escrevo tudo o que não escrevi durante toda a minha existência. E tenho refletido sobre esta relação obsessiva que o escritor tem com a palavra. Pois, apesar da minha profunda necessidade dela, sua aproximação é muito tímida às vezes, e fico com todos os meus sentimentos desamparados de frases. Apenas sentir, sentir, sentir demais me entorpece, instiga minha insanidade e provoca uma profusão de diálogos e monólogos absurdos dentro de mim. Será que alguém repensa a própria existência e vive este processo de mergulhos até perder o fôlego intencionando respirar, por um segundo que seja, na superfície das coisas?

M., eventualmente, tenho tido algumas crises de ausência e minhas tentativas de dizer coisas soam vãs, pois nada escuto ou vejo. Mas estou condicionada a estimular minha mente e eu não me dou este instante de paz. Tiro o meu coração da garganta e pergunto o que ele tem a me dizer. Mas B. não quer apenas minhas palavras, B. quer minha presença, e tenho estado tão indisponível para me relacionar com algo que não seja um texto. Um livro. Centenas de livros espalhados pela cama antes de dormir. De tentar dormir.

Centenas de abas do Word abertas com frases desalinhavadas em cada um delas. “Deseja salvar as alterações?" Sim, não, talvez, não sei, será?. Confusa, confusa como nunca estive. E tão povoada e só. Absurdamente só com todas estas pessoas que moram em mim. Com todas estas cores e paisagens e sensações e metáforas e músicas e aquele filme que nunca mais consegui parar de assistir porque demorei tanto para conseguir assisti-lo e eu estava tão entranhada naquele roteiro que fui minha espectadora por duas horas. Tive duas horas de eternidade, M. E, agora, Roberto Carlos me dando um nó no peito. Uma vontade de chorar de cansaço e B. querendo me dar colo e eu recusando porque preciso escrever. Roberto Carlos me diz “eu me vi tão só...” e eu choro, choro e B. tenta abraçar minha confusão. Mas ela é minha, B. não merece minha confusão. E “eu me vi tão só, enfrentando momentos difíceis de solidão...”, Roberto Carlos parece saber bem o que é isso. E, por enquanto, estou salva. Reze por mim,M. (Eu precisava estar dormindo agora mas estou escrevendo para você).

Então, apenas me abrace em pensamento enquanto eu choro.
Sinto sua falta,

Marla de Queiroz 

terça-feira, junho 04, 2013

B. de AMOR!



Hoje, pela primeira vez eu chamei B. de MEU AMOR. Foi tão espontâneo que nos espantamos simultaneamente, mas depois o sorriso dele foi se alargando até encostar no meu.

Nunca voltei mais cedo para casa por causa de B., mas hoje eu tive muita vontade de encompridar o nosso tempo juntos: sempre tão descontinuado pela crueldade de um despertador que nos desabraça na hora mais delicada do nosso chamego.

B. nunca foi insistente ou invasivo. B. não quer namorar a poeta, B. me trata como musa e aprecia o que escrevo, ele quer namorar o ser humano inteiro. Ele me olha como pessoa: e nisto percebe todas as minhas fragilidades e as palavras que o meu silêncio mastigou. Conhece minha mandíbula trincada de raiva, minhas infantilidades, o meu ego atuando, e um jeito independente demais que, ele sabe, é pura autodefesa.

B. me desmorona com sua maturidade de chegar junto, de bancar a história, de saber calar quando me altero e de ser assertivo quando se sabe inofensivo. B. não discute, vai embora e volta para me dar tempo de reavaliar minha impetuosidade e de autoanalisar minhas palavras cuspidas. Ele volta quando o meu abraço é sincero, imaculado.

Mas ele faz isso apenas porque nos continuamos sem subtrações. Somos tão lúdicos juntos e o que nos agregamos com a especialidade de cada um é ímpar. Nossa troca é justa, é pura, é deliciosamente nossa. Nosso “estar junto” é um bem-estar único.

Hoje, pela primeira vez, eu chamei B. de MEU AMOR. E, nós sabemos, foi isso que ele se tornou.

Marla de Queiroz 

domingo, maio 26, 2013

QUANDO HÁ FETO


Uma ventania no meu corpo ventre, 
afeto se exacerba se há feto após semente. 
Mudo o meu semblante, pele, poros, valores, planos. 
Será, talvez, o único amor onde não caibam desenganos.

Todas as minhas formas vão se amoldando. 
Há além de um EU, um ser tão MEU, 
que sendo em si dentro de mim, é também Mundo. 

Uma ventania no meu corpo ventre mudou todos os meus rumos. 
Como te dizer, se ainda desconheço a tua face, deste amor que já é tão profundo? 

(Flor que desabrocha, pétala por pétala. Tantas no jardim, mas só me atento a esta).

Eu te gestei por meses, guardando como MEU. 
Mas quando vi teu rosto, quem nasceu fui EU.

Marla de Queiroz

terça-feira, maio 21, 2013

Outra Narrativa



M. estamos sentados nesta escada e vejo tua cara de choro, a minha cara de sono e as nossas caras de fome. A recusa não é dura, é o desejo que está flácido. Entenda, acabei de parir um livro e um processo, acabei de tirar leite da pedra para amamentar meus versos, estou de resguardo deste parto. Estou partindo, M.

Não posso acolher tua espera, desesperas agora, pois eu já fui embora. Entenda que eu estou dialogando com o cotidiano dia após dia e, nesta correria, tentar entender teus argumentos para me ter são complexos demais para quem quer da vida paixão, ainda que fugaz. Não vou usar o clichê de “este não é o momento”, eu não estou entregue faz tempo, me desapaixonei por você.

Estou em outra narrativa, um parágrafo recente que parece antigo se desenha, dentro dele a minha saudade está escrita. Não, M não sei se é uma história recíproca, mas não começamos o próximo capítulo e talvez seja nele que tudo o mais comece a fazer sentido.

Sim, alguns romances são dramáticos, mas nem sempre fictícios. É preciso ter fogo, não necessariamente artifícios.

Entenda M., eu preciso terminar o nosso mal acabado conto sem fadas, desromancear este vício para conseguir desenrolar esta nova trama que se anuncia:

Ela está apenas no início.

Marla de Queiroz 

quinta-feira, março 14, 2013

Sobre a dor



Mas o que faz a dor? A dor quando bem vivida, percebida, acolhida, não passa de uma forte emoção. Nem toda dor é causada por alguém: dor de amor é a mais vulgar (no sentido de ser a mais comum), dor existencial é uma transcendência. Não evito minhas dores, vou até o cerne dos sentimentos, vejo-a tão vital quanto a alegria. Pois se, através deste processo também me vem a necessidade de autoinvestigação e evolução interna, por mais desnorteada que eu me veja enquanto inserida no emocional da situação, é esse desconforto que me indica o degrau acima, me tira da zona de conforto, me instiga a buscar uma nova direção. A dor bem aproveitada não deve ser temida, deve ser usada como ferramenta para o autoconhecimento, extirpação do mal-resolvido, para o crescimento. Eu não temo a dor, nem emoção alguma, se assim fosse, até a alegria me incomodaria. O que não permito é que ela me leve ao estado da prostração, da autopiedade ou de algo que não aceite regeneração. Dor transmuta-se. E o Tempo dono de todas as coisas, ensina quão provisório é o pranto e a gargalhada. Por isso não recuso nada.
Que venha o que vier, como vier. Eu suporto qualquer circunstância que me lapide, que me desassossegue para que eu valorize os momentos de paz do meu coração.
Vida é totalidade. Inclui tudo. Vida é vontade de Mundo.
Dor faz parte da vida e, por mais preciosa que seja, não permito que ela seja a parte mais importante.



Marla de Queiroz

Autoexplicativa




Quando uma pessoa cria uma página numa rede social, torna seu perfil público e compartilha curiosidades do seu cotidiano, isto pode ser carência, exibicionismo, vontade de encontrar amigos antigos, conhecer novos, trocar impressões com outros que comungam do mesmo ofício, enfim, pode ser por milhares de outros motivos ou por todos eles juntos. Quando a tal pessoa é uma escritora que perdeu a dimensão da repercussão dos próprios textos (muitas vezes publicados com a autoria trocada), e que não entende este processo de desumanização que alguns criam porque nos colocam num patamar quase divino, isto pode ser um suicídio, um homicídio, um desastre, uma dádiva. Tudo depende da forma como as coisas são  conduzidas.


Pois bem. Falo de mim. Eu não sou parâmetro para ninguém. Nasci excêntrica, cometo indecências sem o menor pudor e, desde que eu não invada o espaço de ninguém, vivo a minha vida como me convém. Trabalhar a minha espiritualidade ou exercitar diariamente o meu melhoramento como pessoa, não faz de mim uma pessoa meiga, doce, fofa. Nem me obriga a isto. Faz de mim mais compreensiva, mais amorosa. Meu temperamento é intempestivo, meu posicionamento no mundo faz com que eu viva numa eterna autovigilância para não ser hostil. Eu me atiro, diariamente, de um pedestal imaginário que alguns me colocaram e isto é exaustivo. Sou um ser humano cheio de reformulações íntimas para fazer, de questões emocionais para resolver. Várias coisas eu consegui conquistar: a minha autoestima não é arrogância, é um perdão demorado que me dei para aprender a gostar e cuidar de cada detalhe que tenho: características, defeitos e qualidades. Sinto uma gratidão eterna pelo que me dão de afeto e afago, mas não escrevo para receber isto: é consequência. 


Escrevo para respirar.


Minha nudez não está nas fotos, mas nas palavras. Minha exposição é a maneira mais honesta que encontrei para estar mais próxima de cada um. E é dessa forma que eu interajo com o Mundo: sem economia de qualquer coisa. Sem sutilezas. Sem medo de errar. Sem dar opiniões que não agregam na vida alheia, só para alfinetar. Não tenho vocação para recalques, não sinto inveja. Gosto de tudo o que sou e do que tenho. Não trocaria minha vida, meu corpo, meu estilo de escrita, minhas transgressões pelo “bom comportamento” de ninguém. Eu não trocaria nem os meus problemas se pudesse optar.


Portanto, venham os que quiserem, critiquem, amem ou deixem-me. Mas não se esqueçam que sou humana e tenho esta qualidade: de ter milhões de defeitos para me lapidar. O meu propósito primordial é simples: eu só estou aqui para escrever, para respirar.
Marla de Queiroz