sexta-feira, outubro 12, 2007

A terceira versão_ ELA



Foto: Maria Salvador


Eu sou aquelas páginas que ela arrancou, os suspiros que ela abafou, o prazer que ela omitiu, a transgressão, a poesia escondida entre as cartas não entregues...Era pra eu ter sido a brincadeira de uma noite, a sobremesa de um casal, e, da garrafa de champagne, apenas a terceira taça.Depois tive que ser transformada num segredo,numa espécie de doença fatal.


Eu sou a pessoa pra quem ela ligava de madrugada, a quem ela visitava clandestinamente quando ele saía. Eu sou o motivo de todas as brigas que ela provocou. Eu sou a concessão dela aos apelos sexuais dele. E a tentativa de salvar uma relação falida. Mas me tornei um susto, um peso, o imprevisto pra quem tinha sua narrativa sob controle.


Eu sou aquele ponto e vírgula no lugar do ponto final de quem já tinha escrito o último capítulo do seu romance ideal.Ela nem imaginava que pudesse gostar tanto, ir além, sentir saudade quando estivesse sóbria.Eu sou as metáforas novas, a viagem inventada, os quinze dias na casa de serra sem dar notícias alegando que precisava escrever isolada do mundo.Eu sou o orgasmo mais intenso, a febre entre os lençóis,a dança dos travesseiros coloridos.Eu sou o café-da-manhã na cama, o banho de duas horas, o beijo de vinte e cinco minutos.Eu sou o poema que relata o encaixe dos nossos seios e o beijo de todos os nossos lábios. A história sobre meninas, sobre fadas e o violão encostado na lareira pra desocupar os braços pro abraço mais longo.


Eu sou as páginas que ela desistiu de publicar pra se proteger, se preservar.


Fui arrancada da história dela como essas páginas.Fui escondida entre juras de um falso amor que ela fazia a ele. Eu sou as tantas frases amassadas, descartadas da seleção dos capítulos.Mas sou a poesia escrita, tatuada no corpo. Sou a única digital que ela não conseguiu tirar no banho.

Eu sou essa emoção que ela rasgou da narrativa pra que os holofotes se voltassem todos pra sua história de amor mais convencional_eu seria a quebra da linearidade, a falta de estrutura do texto, o capítulo independente do resto do livro, aquele que sobreviveu sozinho.


Eu sou o silêncio deitado nos quartos,a cor do baton no retrovisor do carro.Eu sou o buquê de tulipas invadindo as tardes desavisadamente.Eu sou o final da espera, o amor de outras esferas.


Mas o que sei dele?Era um louco.Muito bem articulado, sedutor e completamente despudorado.Apertava meus braços com força,mordia minhas coxas com paixão e fúria, puxava meus cabelos, empurrava o meu rosto como quem desiste de dar o tapa.E , quando eu estava absolutamente entregue, quando eu estava quase suplicando a penetração, quando meus quadris se arcavam buscando o encaixe dele, me empurrava pro outro lado da cama e buscava a ela, que nos observava tocando-se com uma timidez que mais parecia culpa.E eu tinha que assistí-lo enquanto ele a possuía com ternura e calma.


Quando ela era aquela presa dissolvendo-se em suor, eu podia ver as veias do pescoço salientes com a força que ela fazia mordendo o travesseiro pra abafar o grito.Era quando ele me chamava pra perto novamente pra que eu intensificasse o prazer daquela mulher em brasa.E ela se contorcia como quem sofre, e era a cena mais bonita que eu já vi: um corpo como palco daquela dança incrível de labaredas azuis.(E eu sabia que ele só me possuiria quando ela já estivesse em transe).


Sim, ele era um louco. Mas só me possuiria quando ela não mais conseguisse pensar nada além de gemer e balbuciar palavras fraturadas.E ele me abandonaria antes que ela voltasse daquele sonho bonito.


Sim, ele era um louco inesquecível.

*

*

Marla de Queiroz


P.S.: Este texto faz parte de uma peça teatral que estou escrevendo chamada Matrioska.

A primeira e a segunda versão podem ser lidas aqui.


P.S.2: Há tempos quero mudar o nome do blog...Por favor, deixem suas sugestões.
P.S.3: O Calcinhas ao Léo foi atualizado com os textos da sexta edição do jornal. Visitem-nos!

9 comentários:

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...

Pé do meu samba! Mãe do meu Buda! Amo infinitamente!!!

Paula Calixto disse...

"Pés no chão, cabeça nas nuvens e coração na poesia". É de minha autoria, mas sedo como sugestão ao nome do blog porque também é a tradução do que vejo aqui no seu espaço e no enrredo dessa tua peça.[;)]

Beijos

Unknown disse...

Que texto LINDO!!!

Unknown disse...

TRAIDORAA! eh isso que essa escritora eh! TRAIDORAAA!! Ela se trai, trai ele e trai ela!! Sente vergonha do proprio amor e se defende dele escrevendo mentiras para vender!! ai como a odeio!

ps: nao vejo a hora de ler o proximo
ps2: esse texto me fez chorar no trabalho, vc acredita
ps3: bjo. te adoro!

Anônimo disse...

Em Ponto de Marla...
(texto lindissimo...by the way)

Paula Tavares disse...

Esta Matrioska vai ficar linda! Seu blog precisa d outro nome? Ah não. Eu gosto! Linda vc!

beijo-te!

Anônimo disse...

Esses seres em Marla gravitam em nós. Ando beirando ilhas e o sol derrete amores vis. Também ando louco, feito o louco narrado aqui.
p.s.- Quer mudar o nome do blog? Lembra que você já quis pegar "transflormar" pra si? Leve quando quiser. Riodaqui. Beijo na dona da casa.

eliz pessoa disse...

Poxa, que texto bem escrito. Impressionante... Parabéns escritora! Bjos! eliz

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A poesia acontece quando as palavras se abraçam...